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Um site para pensar sobre tudo e chegarmos sempre a um singular pensamento final: sabermos que nada sabemos.
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Tiago Pimentel
Críticas dos leitores para: tiago_pimentel@hotmail.com

domingo, julho 31, 2005

A arte e a verdade

Louis-Ferdinand Céline, autor do livro Viagem ao Fim da Noite, celebrizou uma curiosa citação: Quando escreves, devias colocar a pele em cima da mesa. É uma afirmação que arrasta, de uma vez só, a coragem do pensamento desnudado, bem como do corpo enquanto paisagem da nossa identidade. Dito por outras palavras: reflecte a audácia de nos despirmos de qualquer máscara, ao mesmo tempo que nos revemos nas palavras que retiramos do nosso próprio corpo (e que, por consequência, nele escrevemos).

É uma expressão poética que, infelizmente, nem sempre reflecte a verdade da arte. Sobretudo em artes mais mediáticas, concretamente a música e o cinema: o artista é muito mais um simulador, um apropriador de ideias e de poses que nem sempre reflectem a verdade escrita no seu corpo. É muito mais fácil colocar uma máscara em cima da mesa, em vez da própria pele. Um cantor, um actor, um cineasta, é tanto menos um artista quanto mais se esconde da sua própria verdade; quanto menos procura no sangue a linguagem específica da sua sensibilidade. Porque o sangue é a verdade sem dissimulações.

Charlie Chaplin, na obra-prima «Limelight», diz a determinada altura: Não gosto do teatro. Também não gosto do sangue, mas corre-me nas veias. É esta a biologia cruel que define o artista: ele, genuinamente, não o é por escolha, mas sim por obrigação, como uma droga que lhe corre nas veias. Não vivemos porque escolhemos respirar; respiramos porque escolhemos viver. A arte só é verdadeira se se manifestar como uma forma de vida, onde podemos rever esse desespero do artista em prolongar a sua existência por mais uns tempos, por mais umas pessoas. Um cantor mediano e vulgar dirá que procura melodias e letras inspiradas para poder dormir em paz. Um cantor de excepção dirá que ouve melodias e letras na sua cabeça e precisa de as retirar para o papel, de forma a poder descansar em paz. A mesma verdade revemos num argumentista, num realizador, num actor, etc. A arte enquanto verdade arrasta uma subversão da candura mediática de uma certa pose de celebridade.

Arte e verdade são dois conceitos tantas vezes mal tratados pelo discurso televisivo, manipulados pela necessidade de, em televisão, tentarmos sempre normalizar os pensamentos em direcção a um vector comum. É um problema, antes do mais, pedagógico e cultural que inviabiliza qualquer margem para afirmarmos a nossa diferença. A arte é sangue e a televisão, na maioria das vezes, é uma imitação barata, um circo de imagens aleatórias cuja abordagem mais próxima da verdade da arte se reduz, ora aos estereótipos banais das telenovelas, ora aos cabeçalhos escandalosos das revistas da moda devidamente comentadas. Será que os mais desatentos ainda não perceberam que é possível conhecer muito mais de Spielberg através de um filme seu, do que numa reportagem sensacionalista que constrói uma psicologia barata sobre a verdade que julga ver nas imagens? Mas também me parece importante explicitar que nada é tão linear como parece. A televisão pode ser arte, assim como o cinema é, tantas vezes, um discurso medíocre. A arte não depende do formato, mas sim do talento de partilharmos a nossa verdade com quem queira ouvir.

Pode parecer arrogante pensar que podemos definir a arte, um conceito já de si demasiado abstracto para encaixar numa definição. Neste texto tentei aproximar-me dessa abstracção, dentro da minha sensibilidade, sabendo, por curioso paradoxo, que não era possível criar uma definição concreta; apenas um conjunto de ideias vagas que ajudam a delimitar as fronteiras do conceito e, espero, orientam o meu pensamento e a minha sensibilidade quando ouço uma música, quando vejo um filme, ou simplesmente quando penso numa ideia. Em boa verdade, a arte existe também para isso: para nos ajudar a pensar e a reflectir sobre o que o artista escreveu no seu corpo. Porque, no limite, está a escrevê-lo, também, no nosso.

Tiago Pimentel

sábado, julho 23, 2005



Charlie and the Chocolate Factory

Class.:

Uma pequena delícia! Tim Burton recupera uma personagem do património nacional, cultural e afectivo dos EUA, Willy Wonka, e empresta-lhe a sua própria sensibilidade, para o tornar também parte do seu património cinematográfico. Johnny Depp é radicalmente diferente de Gene Wilder, sem ser necessariamente melhor ou pior por causa disso; é, antes do mais, um trabalho de composição que se projecta na ambivalência de figuras tão próximas do cinema americano como o próprio Jerry Lewis. Existe, de facto, esse lado genuinamente naive em Depp, à medida que desconstrói todo um modelo de comédia fascinado pela descoberta amarga de uma identidade. Confesso que alguns excessos esquemáticos do argumento e das personagens, reforçado (em última instância) por todo o lado kitsch do filme, inviabilizam um tratamento mais incisivo sobre todas as variações do modelo melodramático que o filme pretende efabular.

Formalmente, é um herdeiro directo de objectos muito dignos do cinema clássico americano, como o incontornável «O Feiticeiro de Oz». Tematicamente, é mais próximo a Burton do que se possa pensar. O cineasta recupera a busca de uma identidade (mais especificamente, a relação com o pai) como fundamento temático de todas as fábulas. É nos labirintos da sua orfandade que Willy Wonka se revê como herói amargurado das grandes fábulas do cinema americano e acaba por ser apanhado, inadvertidamente, na recuperação de um lugar humano que se julgava irremediavelmente perdido: a família – espaço simbólico que funciona como catarse para todas as tragédias. Existem alguns pontos de contacto com «Eduardo Mãos de Tesoura», além da presença catedrática do pai e do isolamento auto-imposto pelos protagonistas que, confrontados com uma sociedade que não os compreende, refugiam-se na sua própria marginalidade. Existe algo mais: a comunicação artística que as suas diferenças ajudaram a tornar especial e apurada. Enquanto Eduardo esculpia as mais belas peças de arte em arbustos e cubos de gelo sem, no entanto, poder tocar numa pessoa, já Willy Wonka vive obcecado pelos sabores mais exóticos para colocar no seu chocolate de forma a comunicar, de alguma forma, com o mundo exterior. Isto é: enquanto, no primeiro, o tacto (ou falta dele) servia de metáfora ao amor irredutível e espiritual entre dois seres, no segundo, o sabor preenche a existência de alguém condenado a viver sem toque humano.

O filme está, além do mais, carregado de elementos burtonianos, desde a fábrica de chocolate (mais um local simbólico onde os seus protagonistas se refugiam da normalização social), até aos arrepiantes Oompa Loompas e respectivas coreografias, passando por uma fotografia kitsch que capta todas as imagens dentro da fábrica (isto é: dentro do imaginário de Willy Wonka). Não estou seguro que o esquematismo do argumento, com maior ou menor previsibilidade, acabe por resultar, mas creio que todas as questões melodramáticas que foram levantadas, acabam por ser limitadas pelos excessos kitsch e pela linearidade dos destinos que se definem para cada personagem. Apesar de superficial, «Charlie and the Chocolate Factory» é uma belíssima fábula sobre a aceitação de um espaço humano (a família) - normal na sua presença mas especial na sua essência - sem abrirmos mão das diferenças que nos tornam especiais.

Tiago Pimentel

quinta-feira, julho 14, 2005

Revisitando War of the Worlds

Finais (in)felizes – Texto com SPOILERS (quem não viu o filme NÃO leia este texto)


Não é a primeira vez que um filme de Steven Spielberg é criticado pelos seus derradeiros minutos. Não é o primeiro nem será o último, mas é, curiosamente, um dos poucos que não reúne consenso no objecto específico da crítica. Isto é, os derradeiros minutos de War of the Worlds funcionam como uma espécie de self-service pessoal de uma certa tendência ideológica que alguma cinefilia aprendeu a interiorizar. Uns querem o filho morto, outros a mãe, e há até quem se insurja contra a solução final pouco verosímil da aniquilação dos alienígenas. Vão desculpar-me os mais desatentos mas, sabendo que este argumento não justifica, por si, os valores específicos do filme, é fundamental relembrar que todas as soluções finais (excluindo os filhos que só existem no filme) já foram escritas há mais de 100 anos. Curiosamente (ou não), o réu continua a ser Spielberg que, pobre infeliz, não perde o mau hábito de estragar os seus filmes nos últimos minutos, nem mesmo quando está a ser completamente fiel à fonte literária de H. G. Wells.

Para ser sincero, nem é este o núcleo da questão. O problema que mais afecta a cinefilia e a sua relação com um cineasta como Spielberg, é o tratamento programático a que a sua obra está constantemente submetida. Tudo depende de um contexto – neste caso, o cineasta. Uma mulher com um vestido negro, num filme de Kubrick, pode ser um pretexto para relançar todo o tipo de dissertações existencialistas. Um pai a entregar os seus filhos à mãe, depois de ter ganho o seu lugar no «espaço familiar», num filme de Spielberg é um final feliz e lamechas. Pior que este «pensamento» preguiçoso, é a forma como o pensamento se instalou e já tomou parte integrante de uma certa cinefilia. Peço que entendam este texto, não como uma acusação ou uma denúncia revoltada, mas como um incentivo a repensar algo que me parece, de uma vez só, do mais trágico e contido que Spielberg jamais filmou. É um filme sobre a descoberta da paternidade. Em boa verdade, a figura paterna sempre foi uma aparição no cinema do cineasta: fisicamente ausente, mas reconstruída por uma presença simbólica que, no limite, se esgota na sua própria ilusão (fosse o ET em relação a Elliott, a personagem de John Malkovich em Império do Sol, ou o próprio Richard Dreyfuss em Encontros Imediatos do 3º Grau). Guerra dos Mundos, neste sentido, relança novas leituras na filmografia de Spielberg: na linha de outros filmes mais recentes, nomeadamente Minority Report e Catch me if you Can, o pai deixa de ser um símbolo, para ganhar o direito a uma presença. E, neste filme, a paternidade é mais do que um direito, é uma obrigação. Uma obrigação que Cruise terá de recuperar. De resto, todas as personagens neste filme me parecem perdidas e sempre à procura do seu próprio lugar no «espaço familiar» em que se encontram. Até porque, pela primeira vez, os extraterrestres não vêm preencher o vazio familiar de ninguém; vêm, por outra, forçar a reconstrução de laços familiares que se julgavam irremediavelmente perdidos.

Os extraterrestres caem (uns à entrada de Boston), depois de sucumbirem vitimizados pelos milhões de microorganismos que habitam no nosso planeta. É natural que a família de Ray (Cruise) esteja ainda em segurança, numa cidade que não tinha sido ainda destruída. Em todo o caso, é ridículo assumir que alguém tinha de morrer para caucionar a verosimilhança da história. É fundamental perceber que o filme tem uma perspectiva. A saber: contar a história de uma família que sobreviveu. Como esta, até podem ter havido outras. Em todo o caso, o final é surpreendemente anti-climático, do mais contido que Spielberg já filmou. É um pequeno bónus para um filme que altera os nossos ritmos respiratórios como bem lhe apetece. Não oferece a possibilidade de uma catarse explosiva para expirarmos todo o oxigénio que poupámos durante 2 horas. Posto isto: será feliz? Será infeliz? Só esta colocação redutora de um final tão rico e trabalhado, arrepia-me e perturba-me. Devia ser possível pensar mais sobre as imagens, sem recorrermos a chavões do género: “ah, ele voltou para a mulher, então isto é final feliz”, ou “pois, o filho sobreviveu, isto é mesmo feliz.” Primeiro, porque um final feliz não é condição automática para diminuir o valor de um filme e, segundo, porque é tudo demasiado elaborado e convulsivo para ser adjectivado de forma tão telegráfica e preguiçosa. É urgente sabermos distinguir o pensamento televisivo do pensamento cinéfilo. Ou, por outra: o problema não devia estar no pensamento, mas sim nos diferentes discursos. Mas o mais perturbante é que o simplismo do discurso televisivo parece estar a afectar, de forma assustadora, o pensamento crítico e humano. Que felicidade poderá existir num pai que, depois de aprender finalmente a ser pai, tem de abrir mão dos seus filhos novamente? Que felicidade poderá existir num pai que aprendeu a gostar dos seus filhos mas que percebe, no derradeiro momento do filme, que nunca eliminará a distância que o afasta de uma família que não lhe pertence? (relembrar que a personagem de Cruise assiste ao «reencontro» familiar sempre à distância, como um desconhecido). Que felicidade existe num final onde o planeta está quase todo destruído? Existe uma contenção quase irónica em Spielberg. Uma contenção que raras vezes lhe conhecemos. Tem tanto de ironia quanto de profunda tristeza. A família spielberguiana é, mais do que nunca, uma referência para mover qualquer uma das suas narrativas. Mas é, também, um espaço ilusório, um momento efémero de ilusão: a de pertecermos a esse lugar chamado família (provavelmente o maior de todos os extraterrestres spielberguianos). No fim do filme, existe resignação, felicidade, infelicidade, comoção e muito mais. Mas para sermos justos e sintéticos, existe mesmo é muito amor.

Tiago Pimentel

sábado, julho 02, 2005

Live8 - To make poverty History

20 anos passados sobre a última Live Aid e Bob Geldoff voltou a reunir os nomes mais populares da música num espectáculo mundial de proporções épicas e inéditas. É bom perceber que o objectivo deste novo espectáculo, apesar de partilhar da mesma solidariedade da velhinha Live Aid, tem agora um vector de acção radicalmente oposto e admiravelmente sintetizado na frase que se tornou o slogan desta Live 8: "Não queremos o seu dinheiro, queremo-lo a si." De facto, sabendo que a caridade é insuficiente para resolver um problema que é, de uma só vez, cultural e estrutural, impõe-se um esforço globalizante a nível governamental para modificar o estado de saúde do nosso planeta, concretamente do continente africano.

Bono, dos U2, sintetizou a problemática de uma forma admirável: "Não podemos mudar tudo, mas o que podemos, devemos. Queremos ser a geração que ficará recordada pela invenção da Internet? Pela guerra ao terrorismo? Ou pela geração que fez a pobreza extrema passar à História?" De facto, não se trata de revolucionar o mundo de uma só vez, mas sim de fazer o que está ao nosso alcance e repor as suas coordenadas humanas. Não é um desafio fácil, mas ninguém disse que o era. Além de todas as complicações burocráticas e processuais que contaminam a distância cultural que nos afasta do povo africano, é fundamental percebermos que é uma questão estrutural. Ou seja, não se trata de alimentar os países (ou, mais directamente, os seus governos corruptos) com dinheiro de caridade, mas antes criar estruturas económicas e sociais nesses mesmos países possibilitando o seu próprio desenvolvimento. É uma ideia, é uma solução. É, pelo menos, mais do que tínhamos há 20 anos atrás, altura em que a Live Aid vivia mais da ilusão dos anos 80 e de uma geração que queria gritar por justiça, mas sem grandes ferramentas práticas e ideias concretas para complementar o sonho que todos cantavam.

No seu espectáculo, a Live 8 foi um espaço de celebração da música, da vida e do humano. Foi, acima de tudo, um uníssono desesperado, mas confiante, pelos direitos humanos. Pelo palco passaram várias estrelas da pop, do rock e mesmo do hip-hop. A registar a abertura de Paul McCartney com os U2 a cantarem um mítico e, hoje, simbólico Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, a One tocada exclusivamente pelos U2 (na minha opinião, o grande momento de todo o espectáculo com um pequeno e memorável discurso de Bono, antes da música), a actuação incendiária dos Muse, a boa prestação da Madonna (que 20 anos depois, está consideravelmente melhor), Bittersweet Symphony tocada pelos Coldplay com Richard Ashcroft e a magnífica actuação dos Pink Floyd quase no fecho do espectáculo. Pelos vários palcos da Live 8 cantaram vozes para todos os gostos e admirações e, seguramente, ninguém terá ficado indiferente. É importante que estas vozes cheguem, não só aos corações dos biliões que terão acompanhado a emissão, mas também (e sobretudo) à sensibilidade dos poderosos senhores que estarão reunidos na Cimeira do G8 nesta semana. Mais uma vez, a música mostrou que pode mudar o mundo. Que tem força para o fazer. E o mundo de hoje precisava de um evento destes. Quanto mais não seja para voltar a acreditar.

Tiago Pimentel

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