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Tiago Pimentel
Críticas dos leitores para: tiago_pimentel@hotmail.com

quarta-feira, outubro 18, 2006



A proximidade dos actores

Importa chamar a atenção para uma peça absolutamente central do teatro que se faz em Portugal. The Pillowman é uma peça escrita por Martin McDonagh, um dramaturgo inglês que colocou neste texto, uma estranha e desconcertante harmonia entre o humor e o drama. Mais do que implicar a cumplicidade entre o humor e o drama, o texto demonstra o desconforto que essa convivência pode gerar em nós. Mais do que isso, implica sermos capazes de repensar o nosso papel enquanto espectadores. Se, por um lado, sentimo-nos instintivamente impelidos a responder com sorrisos às (excelentes) notas de humor, por outro, a gargalhada termina sempre com um soluçar mais intenso, colocando-nos uma perturbante questão moral: devemo-nos rir? Estará correcto? O texto parece ajudar-nos nesse dilema e, a partir de certa altura (quando a intensidade trágica do texto já está demasiado elevada), apenas respondemos com sorrisos esbatidos, como se a moral e a consciência nos vedassem o direito a sorrir.

A encenação de Tiago Guedes é surpreendente e fulgurante, respeitando o tom minimalista do texto, recusando qualquer mudança de cenário para manter a tensão da peça intacta. A meio, somos colocados num mini palco que existe uns 2 ou 3 metros acima do palco habitual, onde ocorre uma das cenas mais poderosas da peça. Logo a seguir, o intervalo e, regressando, Tiago Guedes opta por colocar uma projecção de 10 minutos para ilustrar uma das histórias em causa. Mais do que ser um mero utensílio, o vídeo aqui passou a ser mais uma forma de encenar uma história e de reinventar o palco como algo mais que uma exposição de cenários e actores. De facto, nele também é possível projectarmos imagens e apurarmos um interessantíssimo diálogo entre o espaço que se projecta e o espaço físico. Infelizmente, a peça deixou de estar em exibição no teatro Maria Matos, mas quem teve a felicidade de assistir compreenderá o entusiasmo com que falo dela. Quanto mais não seja porque, para mim, uma das grandes razões que me leva ao teatro é sentir a proximidade dos actores. Sentirmos que, a qualquer instante, pode acontecer uma falha ou algo sublime. Ou, para baralhar e voltar a dar, uma falha sublime.

domingo, outubro 15, 2006



De Palma por dentro e por fora

Classificação:


Brian De Palma sofre de um estranhíssimo estigma, recorrente em quase todos os circuitos cinéfilos que lhe reconhecem uma espécie de astúcia de aluno dedicado e estudioso dos grandes mestres, reduzindo a sua obra a uma colecção de imitações de outras filmografias (tipicamente a de Hitchcock). Tão imitador quanto o foi Scorsese de Powell? Ou, mais recentemente, PT Anderson de Altman? Existe um rigor quase idiossincrático na mise-en-scène de De Palma que o coloca instantaneamente no exterior de qualquer rótulo que lhe queiramos impor; uma forma obsessiva de filmar os corpos como se fossem parte de um perturbante jogo de seduções entre as imagens e o espectador. Existe um diálogo erótico que se esconde nas suas imagens e que nos coloca constantemente na insegurança do nosso próprio papel enquanto espectadores. Na verdade, De Palma é um fascinante experimentalista da nossa relação com as imagens, relembrando, a cada fotograma, que uma imagem pode exigir a sua própria sinopse e impedir que a narrativa de um filme seja a exclusiva proprietária do direito de fazer avançar a história.

Sobre «Black Dahlia». Essa relação com o storytelling visual existe, mais do que nunca, na relação com os olhares das personagens, com as suas tragédias pessoais e a insegurança das suas certezas. Olhando para «Black Dahlia» - durante e depois – é, antes do mais, sentir que De Palma nos conseguiu colocar na errância do seu protagonista, impondo-nos a sua obsessão e a sua impossibilidade de querer controlar o mundo à sua volta. Em boa verdade, existem alturas em «Black Dahlia» que o mundo (a história) nos parece fugir, tanto mais quanto as próprias imagens não parecem querer dizer tudo; parecem, pelo contrário, ocultar a verdade indiscutível da sua identidade.

A única verdade que conhecemos é a morte e a ilusão de a podermos olhar como princípio para conhecermos a vida. A vida de quem? De Elizabeth Short, a enigmática jovem cuja morte nos fôra vedada, mostrando-nos apenas pequenos fragmentos da sua vida sob a forma de screentests que De Palma orienta com a perversidade desconcertante da sua voz. De facto, a invisibilidade da sua voz torna-o uma presença tanto mais perturbante quanto sentimos que ela – Elizabeth Short – parece perder o seu olhar (e a sua vida) numa contracenação com ele – o realizador – devolvendo-nos a nós (espectadores) a cumplicidade perturbante da sua vida (e da morte). Porquê? Porque é bom não esquecer que o olhar dela nos encontra apenas a nós, espectadores da sua vida. É esta ambiguidade visual que torna as imagens de «Black Dahlia» tão fascinantes; quem está a olhar para ela? É o realizador ou somos nós? E ela, para quem olha de forma tão cândida e decidida? Os nossos olhares cruzam-se, por diversas vezes, e a minha ingenuidade descansa ao assistir à interpretação que ela faz do discurso que Vivien Leigh celebrizou no papel de Scarlett O’Hara em «E tudo o Vento Levou». Rapidamente, a minha ingenuidade se perverte e deixa-se tomar pela consciência de estar a olhar para uma candura que já pouco preservava da inocência que lhe parecia pertencer.

E é desta ambiguidade que «Black Dahlia» se constrói. De Palma nunca foi um cineasta literário, isto é, nunca achou que as suas imagens tinham de pertencer a uma lógica literária dos acontecimentos e do mundo. Relembremos o seu filme anterior - «Femme Fatale» - onde o seu formalismo ditava os princípios de um outro mundo, com lógicas exteriores a qualquer vontade fugaz de lhe querermos impor um sentido. «Black Dahlia» preserva esse desejo formal de desafiar as imagens e convenções que guardamos do mundo, mas reserva um olhar próximo aos policiais noir dos anos 40, com De Palma a revisitar esse tempo específico com a experimentação e o risco suficientes para invalidarem a possibilidade de um mero pastiche mais ou menos interessante. Prova, aliás, desse arrojo tem a ver com o casting do filme: Josh Hartnett, cuja aparência limpa e ingénua parece redimi-lo da posição de herói; Hillary Swank que se decompõe laboriosamente no papel da anti-mulher fatal, numa inversão notável de papéis com Scarlett Johnasson – seria uma aposta bem mais segura para a tradicional femme fatale, que acaba aqui por utilizar a sua perversa sensualidade como tragédia inconsciente da sua presença na história. Dito por outras palavras: enquanto se sente em Swank uma invulgar fatalidade na sua presença feminina, Scarlett perverte a imagem da dona de casa bem comportada, baralhando os códigos e as expectativas. Nada no cinema de Brian De Palma é o que parece, nem as suas imagens, nem os códigos que ele tão injustamente é acusado de copiar.

segunda-feira, outubro 02, 2006



«Lady in the Water», de M. Night Shyamalan

Classificação:



Acreditar porquê?

Não é preciso um grande esforço de memória (a sua curta filmografia não obriga a tanto) para percebermos que M. Night Shyamalan é um viajante das crenças humanas, concretamente da dialéctica entre a e a religião. Apesar das conotações divinas que a temática possa convocar, só por duas vezes (em «Sinais» e em «Wide Awake») Shyamalan colocou Deus no centro dos desequilíbrios afectivos e familiares dos seus heróis. Apesar da temática tipicamente melodramática, Shyamalan já não pertence à herança do cinema clássico americano; o seu olhar e a sua sensibilidade ajudam a experimentar um novo formalismo e, por consequência cinematográfica e dramática, uma nova relação com o fantástico.

Neste contexto, surge «Lady in the Water», a última ficção do cineasta indiano com uma desconcertante relação com o fantástico, reduzindo-o (pela primeira vez na sua carreira) a um conjunto de «regras de jogo», consumindo gande parte do argumento em ilustrações esquemáticas e verbosas para integrar o espectador no imaginário, em vez de criar uma consistência dramática que menorizasse a imensa negligência pelas verosimilhanças do real (onde, apesar de tudo, o filme pretende habitar). Interessa, portanto, colocar uma interrogação fundamental: acreditar porquê? Importa, antes do mais, questionar a religiosidade das imagens para além dos seus próprios dogmas, sem esquecer que a ficção é sempre uma possibilidade e nunca uma realidade inquestionável.

Que razões nos dá, então, Shyamalan para escolhermos acreditar na sua fábula? Acreditamos porque as personagens acreditam? Acreditamos porque as imagens são sinceras? E se isto for verdade, porque é que as personagens acreditam? Tudo isto são interrogações que me parecem nucleares numa obra de ficção que pretende instalar-nos num imaginário completamente novo, com as suas próprias regras e criar o seu próprio estatuto moral. No entanto, Shyamalan parece ignorar a necessidade de colocar este tipo de questões no seu filme. Parte do princípio que a honestidade das suas imagens e das suas pretensões seriam suficientes para converter qualquer um, mas a verdade é que isto me parece menos um mérito artístico e mais negligência narrativa.

As infinitas possibilidades da ficção e do fantástico são, de facto, fascinantes (não só pelo virtuosismo do fantástico, mas também pela purificação humana que é acreditarmos no que não conhecemos), mas não basta filmar bem e colocar personagens a acreditar com toda a convicção do mundo, para acreditarmos também. Porque é que a personagem de Paul Giamatti acredita imediatamente que ela é uma narfa que foge de uns monstros que se escondem na relva e parte em busca instantaneamente de um alegado escritor que ela procura? Porque é que as pessoas daquela comunidade acreditam de imediato e começam a ler enigmas proféticos nas palavras cruzadas de um jornal?

Será este um filme em que o acreditar é tratado mais como um exercício de estilo e menos como uma necessidade dramática que nasce da complexidade de cada ser? A própria personagem de Paul Giamatti é de uma anorexia dramática desconcertante, pontuada apenas por referências a um passado familiar em jeito de nota de rodapé que o filme relembra, ocasionalmente, para lhe preencher o vazio (peço um pequeno esforço de memória para compararmos a sua personagem com a de Mel Gibson em «Sinais», onde a memória da morte da sua mulher existia, não só nas suas memórias soltas e nos desequilíbrios afectivos da sua família, mas sobretudo no olhar céptico que aprendeu a adaptar ao mundo – eventualmente, como sabemos, a memória da sua mulher seria também a sua salvação). Mas a sua caracterização quase informativa, acaba por negar base dramática a Paul Giamatti, bem como a todo o enredo do filme, cedendo facilmente ao limbo da sua narrativa, algures entre o ridículo e o ingénuo.

«Lady in the Water» é, provavelmente, a primeira vez que Shyamalan abandona o storytelling (muitos dirão que não, a palavra em si parece encerrar demasiados conceitos) e constrói um ensaio sobre a falta de imaginação e o cinismo que estão a degradar o mundo. Mas a memória de Kubrick não é fácil de reviver e muito menos a subtileza formal e alegórica das suas imagens. De facto, creio que Shyamalan se deixou ultrapassar pelas suas pretensões, convocando todas as falhas humanas que pretendia denunciar. Um dos zénites deste seu rotundo falhanço, será a personagem do crítico de cinema: uma lamentável criação tanto mais embaraçosa quanto percebemos que apenas existe para personificar o cinismo do mundo (e, por arrastamento, o cinismo dos que não gostam de «Lady in the Water»), forçando a inteligência do espectador a lidar com um estereótipo cujo destino daria um bom momento de humor, não fossem as embaraçosas implicações morais que Shyamalan pretende invocar.

Existe um esquematismo formal demasiado visível para nos deixarmos encantar pela suposta honestidade simples e directa das imagens; uma redundância de situações e elipses que reduz a complexidade das suas pretensões ao simplismo de um conto popular (as várias vezes que a personagem de Giamatti procura o escritor, passando por todo o processo de reunião do grupo ocupando uma parte significativa da narrativa a demonstrar a sua equivocada formação, com a sua subtileza de um elefante numa loja de cristais a culminar no pensamento de um dos membros incrédulos do grupo sobre a arrogância do responsável pela sua formação). As costuras morais e sociais aparecem demasiado nesta fábula redentora, acabando por esbater os últimos vestígios de complexidade da história.

Fica-nos a honestidade das suas imagens. É importante distinguirmos honestidade de verdade, por uma razão muito simples: a verdade tem sempre a ver com a complexidade do olhar, um compromisso que «Lady in the Water» falha rotundamente. Existe, de facto, uma honestidade imensa na entrega das imagens, na entrega dos actores, mas faltou a Shyamalan acreditar, primeiro, nas suas personagens e na história (como sempre o fez no passado) para conseguir que nós, espectadores, pudéssemos acreditar na sua fantasia. Em boa verdade, o Intérprete até podia ler soluções proféticas e divinas nas Perguntas e Respostas da revista Maria, desde que acreditássemos nas personagens, nas suas motivações, na sua existência, tudo o resto se refaria no ecossistema cinematográfico do filme. Todas elas parecem pálidas ideias de um estereótipo e a comunidade do condomínio parece um fraco rascunho de um filme de John Ford ou Frank Capra. A dedicação e interpretação dos actores é exemplar, a realização de Shyamalan é plasticamente irrepreensível (levando ainda mais além a sua pessoalíssima sensibilidade visual às variações de escalas, luzes e movimentos), mas tudo isto parece existir em função de um argumento esquemático e pouco subtil nas suas ambições morais, sociais e humanas.

No limite, é um filme que parece pedir desesperadamente para acreditarem nele, carregado das melhores intenções e de actores que lutam contra todos os sinais do ridículo para caucionarem a história. O nome da personagem de Bryce Dallas Howard (story) talvez seja apenas um dos indícios pouco auspiciosos da (falta de) subtileza de toda a narrativa, mas, em todo caso, parece-me urgente que Shyamalan regresse ao seu storytelling pessoal e a voltar a tratar os seus personagens como reflexos afectivos e humanos dos lugares silenciosamente trágicos que se decompõem à sua volta (qualquer semelhança com «Lady in the Water» é pura coincidência).

Tiago Pimentel

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