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Tiago Pimentel
Críticas dos leitores para: tiago_pimentel@hotmail.com

sábado, abril 28, 2007



Inland Empire, de David Lynch




A razão das sensações

Há filmes que nos obrigam a escrever, mesmo quando a disponibilidade não é muita. Obrigam-nos, em primeiro lugar, porque sentimos que a palavra é a única forma de esquecermos a solidão em que o filme nos colocou e partilharmos essa solidão com mais alguém. Não necessariamente alguém que nos compreenda ou que concorde com a nossa opinião, mas sobretudo, alguém que, através das nossas palavras, perceba o que sentimos. Obrigam-nos, também, porque a escrita tem uma luminiscência própria que nos permite reestruturar o pensamento, as ideias e a nossa disponibilidade afectiva para lidarmos com mundos e formas que desconhecemos e não compreendemos. Inland Empire é um desses filmes. Coloca-nos perante a radical impossibilidade da nossa verdade. Lynch sabe que, para encontrar a catarse e a luz no cinema, é primeiro preciso escondê-la, mostrar os lugares mais perturbantes da nossa natureza e obrigar-nos a lidar com as suas próprias regras. As opções formais do cineasta são, antes do mais, um desafio à nossa própria dialéctica de lógica e pensamento, sustentando uma máxima que me parece alienígena nos dias que correm. A saber: as histórias, o cinema (e, no limite, a arte) não existem para dar um destino ao mundo. Assim como o nosso olhar não existe para as explicar, apenas para as visitar. Há muito de Godard nesta forma de compor mundos e imagens, construindo-os para desafiar os poucos olhares que, segundo ele, ainda existem no mundo.

A pergunta que, invariavelmente, a maioria dos espectadores fará no fim do filme será: “Mas, afinal, este filme é sobre o quê?” Alguns irão até mais longe e afirmarão, indignados: “Este filme não faz sentido nenhum!” A primeira pergunta parece-me sempre um pouco perigosa, já que coloca algo que é plural e incerto num terreno de uma anónima objectividade que lhe pretende impor um sentido universal. Sou contra isto, sobretudo em objectos como Inland Empire, em que o seu centro temático está na sensibilidade de cada um de nós e não numa alegada objectividade que importa confrontar na lógica televisiva de um programa de debate sócio-político. O mais inquietante em Inland Empire é precisamente, numa primeira abordagem, sentirmo-nos absolutamente comovidos e perturbados com as suas imagens, mesmo sem as compreendermos. Sentirmo-nos perdidos nas nossas emoções. O lugar comum diria que é um filme que actua ao nível dos sentidos, mas é mais do que isso; é um jogo labiríntico com o subconsciente afectivo, com os seus segredos e as suas razões.

As lágrimas que nos acompanham no final são provavelmente as mesmas da jovem que olha para o televisor como se tudo se decidisse ali. Ali, do outro lado, como se ouve na música. São lágrimas que choramos sem sabermos explicá-las de forma universal. Porque essa universalidade perde-se na intimidade de cada um de nós, no olhar... Não sei porque choro com ela, nem a razão desse momento final me comover e inquietar tanto. Não tenho nenhum fundo lógico e literário que me contextualize e componha um património afectivo, nenhuma lógica que me permita identificar com ela e, interiormente, saber enunciar as razões que expliquem porque chora e porque se sente como se sente (e, em boa verdade, as razões para eu me sentir como me sinto). Será que é preciso? Será necessário explicar as minhas emoções de forma tão linear, como se tudo caminhasse numa lógica literária para imprimir destinos nas personagens e no mundo? Eu não defendo a anarquia e arbitrariedade das formas e imagens. Tudo tem que fazer um sentido e, em boa verdade, Inland Empire fez todo o sentido aos meus olhos.

Há um sentido grandiloquente e totalitário, maior que o sentido que a literacia da nossa consciência quotidiana espera sempre encontrar. Há em Laura Dern (e na desconstrução das suas duas personagens) a tragédia das grandes figuras femininas do cinema, desde Shirley MacLaine a Natalie Wood, recuperando também a irreversibilidade trágica da sua presença numa tela de cinema. Num sentido nada acidental e que apenas reforça o cunho autoral do cineasta, a figura feminina dos seus filmes volta a lutar contra o sofrimento de ter que viver. Desde Sheryl Lee (Fire Walk With Me) até Isabella Rossellini (Blue Velvet), passando por Naomi Watts (Mulholland Drive) que a mulher lynchiana conhece apenas o sofrimento de ter que viver até descobrir a luminosidade da morte que tudo encerra.

Tudo neste filme parece deificado, os corpos parecem aparições e cada imagem um pequeno milagre, tornando-se, de facto, uma experiência religiosa assistir à decomposição artística do corpo e alma da personagem de Laura Dern. Qual o significado dos coelhos? E da vizinha bizarra que visita Nikki no início? E como se distingue o que é real e não é? Podemos, de facto, fazer este exercício de recriarmos interpretações nossas para nos sentirmos mais seguros da nossa opinião sobre o filme, mas a verdade é que tudo isso acaba por ser lateral. Estivemos em Inland Empire e isso é o mais importante. Contorcemo-nos de medo perante o desconhecido do imaginário que lentamente se vai decompondo; sustivemos a respiração perante a cumplicidade inquietante em que somos colocados nas contracenações de Laura Dern e Justin Theroux; e choramos com a beleza transcendente e intocável das imagens finais. Perante isto, tudo o resto serão apenas exercícios interessantes para aconchegarmos a insegurança e o controlo que precisamos de sentir sobre o mundo e sobre o nosso próprio destino. Que o destino de um filme seja o espelho de um reflexo nosso que nunca chegamos a ver, eis a sua grande proeza!

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