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Tiago Pimentel
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segunda-feira, novembro 10, 2003

Religião, Televisão e Matrizes

Longa vai a linhagem de filmes que são herdeiros directos do fascínio pelas mitologias e pela mística das ligações entre o Homem e uma entidade divina. E o Homem procura constantemente essa relação com algo superior; sempre fez parte do humano, o confronto com a sua própria mortalidade e, no limite, com o desconhecido. Em «2001, Odisseia no Espaço» essa obsessão pelo (des)conhecimento invocava a relação limite do Homem consigo próprio, num filme todo ele envolvido pelo mais abstracto dos paradigmas humanos: filmar da perspectiva de Deus. Enfim, não é minha intenção transformar este texto numa inventariação reflexiva sobre as ligações do cineasta com a câmara, como a de um homem à procura de uma ordem divina. Seria fascinante, mas interessa-me mais relembrar os filmes que, de uma forma orgânica e directa, retrataram um determinado episódio bíblico ou relativo à religião. Ou de certa forma inspiraram-se nesses relatos para construirem fundamentos narrativos para uma ficção que, de forma directa ou simbólica, invoca essas mitologias.

Lembro-me sempre daquelas séries televisivas, transmitidas quase invariavelmente durante a altura da Páscoa, sobre a vida de Cristo ilustrada numa fórmula que se escudava num maniqueísmo esquemático, invalidando todas as possibilidades dramáticas e humanas. As personagens dessas séries eram sempre esquemas pitorescos, meros veículos de repetição verbal dos escritos dos livros sagrados, favorecendo uma limitação que é, de uma só vez, humana e televisiva: retratar o divino sem acreditar na possibilidade de uma relação com o humano. É uma limitação humana porque o Homem, desde sempre, tem uma dificuldade imensa em retratar o divino, sobretudo por acreditar na sua distância indizível e infilmável, confundindo divino com uma espécie de entidade anónima; e televisivo porque faz parte da cultura novelesca esquematizar o comportamento humano em padrões bipolares, simplificando a complexidade humana nos seus mais superficiais extremos. Nas suas limitações, «Matrix» acaba por ser um produto de ficção científica importado dessa realidade televisiva que os efeitos técnicos ajudaram a esconder.

Neo (Keanu Reeves) é Jesus Cristo renascido para uma nova Era, para tentar resgatar as pessoas do mundo falso (e dos valores falsos) que pensam habitar. Mas a figura crística de Neo sofre dos mesmos excessos de deificação que os Cristos das séries televisivas, só que se situa nos antípodas: enquanto Cristo era uma figura divina que nos aparecia para anunciar a liberdade, Neo é uma espécie de «making of» dessa encenação, ou seja, tenta ser o homem que Cristo terá sido antes de saber que era O Escolhido (The One). Mas a inexpressividade de Keanu Reeves e a previsibilidade invariável do argumento do(s) filme(s) acabam por colocar Neo no vértice diametralmente oposto ao do Cristo de Scorsese - um homem assombrado pela vontade de ser humano. Havia uma relação sensual entre o Homem e a máquina que existia no primeiro filme e que se foi banalizando com o avanço da saga, restando no fim apenas a elegância dos movimentos e a amargura grosseira daquelas paisagens visuais e narrativas – onde, em tempos, existiram sinais de atracção fatal pelos lugares, ainda mistificados, existe no fim uma banalização visual, como se essas paisagens fossem meras evoluções de níveis de um jogo de computador, e não projecções de luzes, cores e formas das ambiguidades virtuais e do desejo carnal da realidade.

As próprias personagens são corpos desvirtualizados (desligados da realidade e consumidos pela inércia do virtual), algures entre a lógica dos heróis dos videojogos e a letargia sonolenta dos autocolantes televisivos. Aliás, o segundo e o terceiro filme parecem dois espisódios esticados de uma série de televisão (que a luxúria técnica ajudou a disfarçar). Em boa verdade, e olhando para trás, penso que é perfeitamente claro que o primeiro filme fechou muito melhor do que o termo da trilogia. Há qualquer coisa de eminentemente televisivo nas duas últimas partes de Matrix, o que me leva a suspeitar que desde o início não havia uma iniciativa clara em construir uma trilogia – vontade essa despertada pelo sucesso incrível do primeiro filme. Mesmo olhando para os dois episódios que se seguiram, as personagens secundárias parecem importadas dos secundários serviçais de várias séries televisivas, desde o “frenchman” até ao “trainsman”, todos eles ícones de um universo que se esgotam no seu próprio simbolismo. Todos eles são funcionais, isto é, existem para cumprir uma missão que geralmente se reduz a uma de duas: transportar conselhos pseudo-filosóficos para o messiânico Neo (uma espécie de leitura da poesia dos «fortune cookies»); ou simbolizar um obstáculo físico, ou simbólico, para o sucesso da missão do herói. Afinal, «Matrix» não é apenas produto da pior cultura televisiva sobre as reminiscências do mitológico; é, no limite, o primeiro filme realizado dentro de um computador. E nesse universo já não existe espaço para o fascínio da imprevisibilidade humana, nem para a imaginação do processo criativo. Restam apenas sinais de uma nostalgia pelo nível zero da sensualidade dos corpos, pelos rituais eróticos dos corpos que se sexualizam no calor dos tiros e das lutas, esbatidos sem piedade pelos labirintos desumanos e frios que a narrativa dos irmãos Wachowski foi acabando por (des)virtualizar.

Tiago Pimentel

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