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Tiago Pimentel
Críticas dos leitores para: tiago_pimentel@hotmail.com

sábado, novembro 22, 2003

Sede de Mal

Espero não ser mal-entendido com este pequeno artigo, até porque nada nem ninguém pretendo denunciar, mas apenas reflectir sobre reacções do pensamento humano que me parecem cada vez mais evidentes e, correndo o risco de ser injusto, cada vez mais generalizadas. Não sei se será dos tempos tristes que vivemos ou das vivências tristes dos nossos tempos, mas apercebo-me, cada vez mais, de uma disponibilidade afectiva maior para narrativas mais negras e pessimistas, sobretudo dentro da comunidade cinéfila. O público em geral é o oposto, o que não invalida o cepticismo humano no geral. Talvez porque muitos procuram no cinema uma forma de escapismo do real: a congelação frívola das comédias mais elementares, a banalização grosseira dos filmes de acção ou até a deslocação planetária para outros mundos do fantástico. Diz-se que um cinéfilo é alguém que ama cinema. Para ele, ao contrário do espectador comum, é alguém que ama a 7ª arte acima de qualquer função escapista. Nesse sentido, onde uma comédia frívola e inconsequente pode resultar num estado de espírito encantatório a um turista de cinema (longe das preocupações cerebrais da sua triste realidade) já no cinéfilo essa despreocupação com as complexidades intrínsecas ao próprio ser humano constitui um interessante paradoxo com a sua atenção e sensibilidade aos efeitos simplistas e maniqueístas das imagens e da palavra. Esta divisão parece algo redutora mas na verdade não o é. Até porque a distinção está na forma como a palavra cinéfilo é redefinida pelas necessidades específicas de cada um. É bom saber descodificar estas «nuances» gramaticais: cinefilia significa amor pelo cinema. Por mais variações subjectivas que a palavra amor possa impor, creio que a simples súmula de obras visionadas dificilmente ilustrará com acuidade o amor genuíno que sentimos por algo. Não é por conhecermos mais pessoas que estamos mais preparados para amar apenas uma. O amor existe de forma individual, por filme e por espectador. E esse amor passa também pela disponibilidade de cada um em querer pensar. Pensar sobre as imagens e sobre as palavras.

Tanta conversa e até agora nada sobre aquilo que eu queria escrever. Mas pareceu-me oportuna a introdução. Sobretudo para introduzir um elemento que me parece decisivo: o que procura cada um no cinema? Creio que um cinéfilo deve sempre procurar mais do que um veículo para escapar a algo. Até porque as necessidades do seu pensamento o assombrarão em qualquer filme. É no seu olhar que se projectam os medos e o cinismo da sociedade e do público em geral (que prefere desviar o olhar no cinema e tolerar tudo aquilo que seria improvável ou pouco plausível de suceder no mundo em que habitamos). Voltando ao princípio, não sei se serão dos tempos tristes e convulsivos que vivemos, mas sinto que, cada vez mais, um filme carregado de negrume e pessimismo é mais tolerado que um filme optimista ou aparentemente mais ligeiro. Os exemplos mais recentes são os casos perturbantes de Elephant e Mystic River. Como devem calcular, não se trata de questionar o valor destes filmes - aliás, nesse sentido estou perfeitamente à vontade até porque são, para mim, dois dos mais preciosos filmes do ano. Mas foram dois filmes que conseguiram quase o consenso geral: não apenas o de bons filmes mas o de obras-primas absolutas. Mystic River é um dos objectos mais negros a sair do cinema americano dos últimos anos. É um filme com um desencanto absoluto sobre a durabilidade eterna das relações humanas, sobretudo a da amizade, aceitando o amor como a fundação familiar para fugir ao isolamento e à solidão. Quando há uns meses estreou um filme chamado Catch me If you Can, muito poucos foram os que valorizaram o lado perturbante do filme, optando por encará-lo como um simpático divertimento frívolo. Os últimos 20 minutos de A.I. - Inteligência Artificial foram acusados de serem uma disneyficação lamechas da frieza emocional e do negrume kubrickiano que os precedera. E agora pergunto: como é possível criticar um filme apenas na dualidade feliz/infeliz ou optimista/pessimista? Se um filme tem um final feliz é mau por si? Ou se, pelo contrário, termina da pior maneira possível é sinal de maturidade, de filme adulto? Se Spielberg realizasse Mystic River, a reconciliação entre a personagem de Kevin Bacon e a mulher não seria um sinal da tal disneyficação simplista e infantil, longe do negrume e pessimismo que deveriam habitar qualquer obra adulta? Ou será que isso já depende dos rótulos que os sacerdotes da acomodação mental promovem e destacam para cada cineasta? Por exemplo, não será difícil prever que Mystic River será um dos filmes do ano (o filme do ano?) para os profissionais dos Cahiers. As coisas não vão bem quando se tornam perfeitamente transparentes e previsíveis as opções e pensamentos de alguém, ainda para mais se for de uma revista inteira (que, na prática, reúne vários nomes). Estou consciente que corro o risco de utilizar o mesmo mecanismo humano que estou a denunciar; isto é, estou a criar rótulos também. Mas penso que o problema é de raíz: esses rótulos já foram criados pelas próprias pessoas que os justificam. E isso é o mais grave. Será possível receber um Bowfinger ou um Catch me if you Can com a mesma intensidade que um Mystic River ou um Elephant? Ou será que estamos de tal forma dominados pela insaciabilidade crónica do nosso lado mais céptico que tendemos a torcer o nariz para o final de um filme como A.I. - Inteligência Artificial? Ainda para mais olhando para a superfície, para os sinais mais imediatos, ignorando que por trás daquela reunião final com a mãe, estará porventura o casamento trágico com a morte. Qual seria o espaço de artistas clássicos como Chaplin ou Capra na sociedade cinéfila contemporânea? Será que os textos maravilhados que se escrevem sobre os seus positivismos estarão reconvertidos e especificados pelo poder que o tempo e a História lhes concederam? Triste e negro é aperceber-me que a História raramente é capaz de valorizar os seus artistas enquanto são vivos e que, só daqui a muitos anos (enfim, quando o tempo decidir impor-se sobre os preconceitos humanos) momentos como o fim de A.I. ou a comoção ligeira de Bowfinger serão apreciados e amados, acima de quaisquer terapias de humor negro ou de pessimismo crónico. Coincidência ou não, este foi um dos textos mais negros e pessimistas que tenho memória de ter escrito.

Tiago Pimentel

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