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Tiago Pimentel
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sábado, janeiro 22, 2005



Something drove him... something consumed him.

THE AVIATOR, de Martin Scorsese

Class.:


«O Aviador» tem sido um dos fenómenos mais falados a propósito dos Oscars e, para já, relembre-se a excelente campanha que conseguiu nos Globos de Ouro. Corre-se o risco, sobretudo pelo desejo de ver Martin Scorsese oscarizado pela primeira vez, de reduzir o debate desta obra à legitimidade de triunfar na noite dos Oscars; mas a questão nuclear a reter é: com ou sem Oscar, com ou sem reconhecimento da indústria, «O Aviador» é um dos filmes maiores de Scorsese e uma das mais colossais forças épicas da Natureza que o cinema (moderno ou não) nos entregou. É um filme que repensa a democracia de uma certa ordem de pensamentos interiores a Hollywood: o talento com que se lida com a fama, a idiossincrasia do cineasta enquanto autor, a preocupação na composição de uma imagem, a excentricidade de uns por antítese à normalização dos bons costumes ditados pela posição social e económica, etc.

Nessa conjuntura, enquadra-se «O Aviador», um filme biográfico sobre Howard Hughes que perspectiva no seu corpo, todas as componentes que definiram os primeiros heróis do cinema de Scorsese. Hughes é uma persona consumida por uma sociedade que não (o) compreende, vítima do seu próprio radicalismo, condenado pela vontade de fazer a diferença. Essa diferença existe na excentricidade da produção de um «Hell’s Angels» ou na fabricação megalómana de um avião de guerra gigantesco, mas podia muito bem ser apenas um taxista que quer “limpar” Nova Iorque da escumalha humana ou um pugilista com desejo de glória. Esse é o formato do herói de Scorsese, sempre nessa fronteira entre a adolescência e a idade adulta, entre a inocência do desejo e a perversão do futuro. No limite: na impossibilidade de habitar uma sociedade que se recusa a aceitar. Onde habitou De Niro em tempos, e agora reciclou com DiCaprio.

De facto, «O Aviador» é um épico do coração, vem bem de dentro das origens de Scorsese, ao contrário de «Gangs de Nova Iorque» que sempre me pareceu mais exterior. «Õ Aviador» é um épico pessoal para colocar na galáxia dos melhores de sempre, ao lado de biografias como «Citizen Kane», onde a carne se funde com o tempo e o mundo parece apenas um conjunto de imagens sem lugar nem corpo; apenas o cinema como projecção dos nossos lugares... dos lugares do Homem no mundo, no tempo e no corpo. Mas a maior das perversões (e um dos maiores prodígios de Scorsese) vem da genuína crença romântica do filme. De facto, «O Aviador» resgata-nos um dos princípios mais extintos de um certo cinismo humano: o capitalismo (e as suas reproduções mais directas) como utopia romântica do Homem. Num certo sentido, Howard Hughes é a recriação de um modelo cultural e humano já esquecido. Um herói que acredita na desmistificação da riqueza; ou, antes, desconstrói todo o conceito de fama e imagem de Hollywood numa dolorosa reclusão social e humana, longe dos outros, próximo apenas dos seus sonhos. É nessa utopia (patologia neurológica, diriam muitos) que Hughes vive: levantar voo para nunca mais aterrar.

Numa frase simbólica que se pode ouvir distintamente no trailer promocional, Hughes afirma: “Ele é dono da Pan-Am, é dono da Commerce. Mas não é dono do céu.” Possivelmente, é nesta impossibilidade que Hughes e Scorsese se revêm. E, nesse sentido, é uma aventura humana infinitamente dolorosa. Tanto mais quanto nos revemos como cúmplices da utopia romântica do protagonista, na impossibilidade de viver no céu e na resignação de aceitar o solo como reclusão e isolamento do corpo, do sonho e do tempo. O cinema de Scorsese atingiu essa depuração, a invisiblidade e a subtileza das suas formas cinematográficas. Tudo existe em surdina: a montagem de Thelma Schoonmaker, a câmara de Scorsese, as presenças verdadeiramente secundárias dos amores de Hughes (brilhante Cate Blanchett), etc. No fim, parece apenas existir Howard Hughes e os seus pensamentos, emoções, utopias e, no limite, a fé.

«O Aviador» é um épico que consuma a onda Goodfellas-Casino-Gangs de Nova Iorque, mas é, curiosamente, muito mais próximo de filmes como «Raging Bull» ou «Taxi Driver». Está muito mais enquadrado nessa abstracção humana, na depuração clássica como forma de abandonar todas as coordenadas afectivas, temporais e espaciais. É um épico para resgatar um lugar justo nos anais do cinema como genuíno clássico intemporal e sem paralelo no contexto cinematográfico contemporâneo. A sua pulsão humana é apaixonante, o seu gigantismo épico é contagiante, a sua retórica cinematográfica roça a perfeição e o derradeiro romantismo de Scorsese é, de uma vez só, comovente e doloroso de sentir. Pedir-nos essa cumplicidade com alguém que está a perder a lucidez, que deixa de ver a sociedade e se resigna à marginalização, seria arriscado. Mas, no fim, nada disso interessa. Somos cúmplices de tudo isso desde a primeira imagem.

Tiago Pimentel

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