«Million Dollar Baby», de Clint Eastwood
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Um pequeno milagre de cinema. Há muito tempo que Clint Eastwood se instalou numa visão algo desencantada da vida e do mundo. Um minuto para recordar a sua filmografia e percebemos que não existe nada de gratuito no seu pessimismo; antes, existe uma dorida, mas apaixonante, orgânica de filmar o amor. A saber: perceber que a vida é, no limite, a mais cruel impossibilidade do amor. Enfim, as variações na intensidade dessa obsessão variam consoante o contexto e a obra, mas «Million Dollar Baby» é, de facto, um filme sobre o doce perigo de amar. É um filme de boxe, mas não é um filme sobre boxe (à imagem do que acontecia, por exemplo, no magnífico «A Lenda de Bagger Vance», de Robert Redford, que jamais se reduzia a um objecto técnico sobre golfe).
Em boa verdade, Clint Eastwood percebe que a tragédia e o amor se cruzam e só nos seus limites será possível desconstruir o risco de amar. «Million Dollar Baby» instala-se nessa trágica insegurança: a da vertigem de nos desprotegermos do mundo e nos entregarmos ao amor. E o amor pode ser o maior dos enganos, o mais triste dos lugares, o mais efémero dos oásis. A personagem de Clint Eastwood, um treinador de boxe consagrado, existe nessa perdição, algures entre a esperança da redenção na religião e a fragilidade cruel do amor. É um dos seus filmes mais negros, mas também dos mais apaixonantes.
É uma história de amor, mas no seu contexto mais abstracto e universal. Frankie (Eastwood) aceita treinar, contra as suas convicções, uma rapariga de 31 anos (Maggie) para esta se tornar numa grande pugilista. É um filme que, lentamente, nos desarma o coração e estilhaça qualquer carapaça de cinismo com um fulgor humano irredutível e sempre apaixonante, mesmo na sua tristeza. Sim, é um filme negro, talvez o mais negro da carreira de Eastwood. Nem sempre é fácil aceitarmos um retrato tão negro e pessimista do ser humano, como uma espécie de corpo errante sem lugares para compreender o amor que lhe foi vedado. Tanto mais quanto nos apercebemos que o desejo de viver é resgatado pelo risco de amar... e é esta vertigem que torna o filme apaixonante, independentemente de Clint Eastwood acreditar, ou não, na possibilidade romântica desta fórmula melodramática resultar.
Vale a pena perder um pouco de tempo a relembrar a acutilância dramática de Hillary Swank na sua melhor composição até à data, no corpo de uma pugilista que luta contra o tempo (e contra o sangue); a presença assombrosa de um actor de classe chamado Morgan Freeman a reviver uma ideia com mais de 60 anos (relembrar o Grilo Falante de Pinóquio) de um corpo narrativo que impõe uma releitura da presença decisiva da «consciência» do protagonista; e, por fim, Clint Eastwood num dos seus mais complexos trabalhos de composição, na carne de um velho treinador abandonado num ginásio de fantasmas, à procura de um lugar paterno que o enquadre. Um dos mais doridos filmes dos últimos anos mas, também, um dos mais belos hinos ao amor.
Tiago Pimentel
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