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Tiago Pimentel
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quinta-feira, julho 14, 2005

Revisitando War of the Worlds

Finais (in)felizes – Texto com SPOILERS (quem não viu o filme NÃO leia este texto)


Não é a primeira vez que um filme de Steven Spielberg é criticado pelos seus derradeiros minutos. Não é o primeiro nem será o último, mas é, curiosamente, um dos poucos que não reúne consenso no objecto específico da crítica. Isto é, os derradeiros minutos de War of the Worlds funcionam como uma espécie de self-service pessoal de uma certa tendência ideológica que alguma cinefilia aprendeu a interiorizar. Uns querem o filho morto, outros a mãe, e há até quem se insurja contra a solução final pouco verosímil da aniquilação dos alienígenas. Vão desculpar-me os mais desatentos mas, sabendo que este argumento não justifica, por si, os valores específicos do filme, é fundamental relembrar que todas as soluções finais (excluindo os filhos que só existem no filme) já foram escritas há mais de 100 anos. Curiosamente (ou não), o réu continua a ser Spielberg que, pobre infeliz, não perde o mau hábito de estragar os seus filmes nos últimos minutos, nem mesmo quando está a ser completamente fiel à fonte literária de H. G. Wells.

Para ser sincero, nem é este o núcleo da questão. O problema que mais afecta a cinefilia e a sua relação com um cineasta como Spielberg, é o tratamento programático a que a sua obra está constantemente submetida. Tudo depende de um contexto – neste caso, o cineasta. Uma mulher com um vestido negro, num filme de Kubrick, pode ser um pretexto para relançar todo o tipo de dissertações existencialistas. Um pai a entregar os seus filhos à mãe, depois de ter ganho o seu lugar no «espaço familiar», num filme de Spielberg é um final feliz e lamechas. Pior que este «pensamento» preguiçoso, é a forma como o pensamento se instalou e já tomou parte integrante de uma certa cinefilia. Peço que entendam este texto, não como uma acusação ou uma denúncia revoltada, mas como um incentivo a repensar algo que me parece, de uma vez só, do mais trágico e contido que Spielberg jamais filmou. É um filme sobre a descoberta da paternidade. Em boa verdade, a figura paterna sempre foi uma aparição no cinema do cineasta: fisicamente ausente, mas reconstruída por uma presença simbólica que, no limite, se esgota na sua própria ilusão (fosse o ET em relação a Elliott, a personagem de John Malkovich em Império do Sol, ou o próprio Richard Dreyfuss em Encontros Imediatos do 3º Grau). Guerra dos Mundos, neste sentido, relança novas leituras na filmografia de Spielberg: na linha de outros filmes mais recentes, nomeadamente Minority Report e Catch me if you Can, o pai deixa de ser um símbolo, para ganhar o direito a uma presença. E, neste filme, a paternidade é mais do que um direito, é uma obrigação. Uma obrigação que Cruise terá de recuperar. De resto, todas as personagens neste filme me parecem perdidas e sempre à procura do seu próprio lugar no «espaço familiar» em que se encontram. Até porque, pela primeira vez, os extraterrestres não vêm preencher o vazio familiar de ninguém; vêm, por outra, forçar a reconstrução de laços familiares que se julgavam irremediavelmente perdidos.

Os extraterrestres caem (uns à entrada de Boston), depois de sucumbirem vitimizados pelos milhões de microorganismos que habitam no nosso planeta. É natural que a família de Ray (Cruise) esteja ainda em segurança, numa cidade que não tinha sido ainda destruída. Em todo o caso, é ridículo assumir que alguém tinha de morrer para caucionar a verosimilhança da história. É fundamental perceber que o filme tem uma perspectiva. A saber: contar a história de uma família que sobreviveu. Como esta, até podem ter havido outras. Em todo o caso, o final é surpreendemente anti-climático, do mais contido que Spielberg já filmou. É um pequeno bónus para um filme que altera os nossos ritmos respiratórios como bem lhe apetece. Não oferece a possibilidade de uma catarse explosiva para expirarmos todo o oxigénio que poupámos durante 2 horas. Posto isto: será feliz? Será infeliz? Só esta colocação redutora de um final tão rico e trabalhado, arrepia-me e perturba-me. Devia ser possível pensar mais sobre as imagens, sem recorrermos a chavões do género: “ah, ele voltou para a mulher, então isto é final feliz”, ou “pois, o filho sobreviveu, isto é mesmo feliz.” Primeiro, porque um final feliz não é condição automática para diminuir o valor de um filme e, segundo, porque é tudo demasiado elaborado e convulsivo para ser adjectivado de forma tão telegráfica e preguiçosa. É urgente sabermos distinguir o pensamento televisivo do pensamento cinéfilo. Ou, por outra: o problema não devia estar no pensamento, mas sim nos diferentes discursos. Mas o mais perturbante é que o simplismo do discurso televisivo parece estar a afectar, de forma assustadora, o pensamento crítico e humano. Que felicidade poderá existir num pai que, depois de aprender finalmente a ser pai, tem de abrir mão dos seus filhos novamente? Que felicidade poderá existir num pai que aprendeu a gostar dos seus filhos mas que percebe, no derradeiro momento do filme, que nunca eliminará a distância que o afasta de uma família que não lhe pertence? (relembrar que a personagem de Cruise assiste ao «reencontro» familiar sempre à distância, como um desconhecido). Que felicidade existe num final onde o planeta está quase todo destruído? Existe uma contenção quase irónica em Spielberg. Uma contenção que raras vezes lhe conhecemos. Tem tanto de ironia quanto de profunda tristeza. A família spielberguiana é, mais do que nunca, uma referência para mover qualquer uma das suas narrativas. Mas é, também, um espaço ilusório, um momento efémero de ilusão: a de pertecermos a esse lugar chamado família (provavelmente o maior de todos os extraterrestres spielberguianos). No fim do filme, existe resignação, felicidade, infelicidade, comoção e muito mais. Mas para sermos justos e sintéticos, existe mesmo é muito amor.

Tiago Pimentel

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