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Tiago Pimentel
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quinta-feira, novembro 10, 2005



«Aurora», de F.W. Murnau

Class.:

Renascimento

Louis Lumiere disse, enquanto as pessoas se perdiam no deslumbramento de um comboio projectado pelo histórico cinematógrafo: o cinema é uma invenção sem futuro. Olhamos para «Aurora» e forçamo-nos a uma correcção que Lumiere não terá previsto: o cinema pode ser uma invenção sem passado, sem presente e sem futuro. Sem nenhum ou com todos, o valor final transcende a mera soma dos factores e redescobrimos «Aurora» como um objecto sem lugar no tempo: foi feito há quase 80 anos mas continua a ser actual. Que ilusão o faz aproximar dessa errância específica de não ser dono de tempo nenhum? É falado, sem o ser. Tem todas as cores do universo, sem as ter. A ilusão estará também em Janet Gaynor, algures entre a elegância rústica do seu penteado tímido e os caracóis soltos pelo mar. Actriz que - é bom relembrar - pontuou a história dos Oscars com uma curiosidade inédita: a de ter sido a única actriz a ganhar um Oscar por vários papéis no mesmo ano («Aurora», «Seventh Heaven» e «Street Angel»). Foi também uma das poucas, de uma geração específica de actores, que conseguiu transitar do período mudo para o cinema ‘falado’ – dizia-se, na altura, que a sua voz encantadora soava bem (e, em meados dos anos 30, era mesmo a actriz do momento em Hollywood) mas alguns perceberam que Janet transportava consigo a herança do actor mudo: aquele que representa sem precisar de falar.

E é essa a ilusão de que se falava. A maior de todas: a ilusão de tudo ouvirmos, sem, no entanto, nada ser falado. No limite, a ilusão de que uma imagem, em cinema, arrasta em si mais verdade do que o real que olhamos à nossa volta (precisamente o oposto do que Lumiere previra, pensando que as pessoas se cansariam de olhar para imagens que poderiam ver no seu dia-a-dia). Em «Aurora» vive-se a apoteose dessa ilusão do mudo (e porque não do cinema?). A sensação de deslumbramento perante cada imagem, como se as descobríssemos, pela primeiríssima vez, no seu indefinivel encanto. Sem querer beliscar nenhuma sensibilidade em particular (a começar pela minha), importa referir que, na vanguarda da indústria digital, nem todos os efeitos especiais juntos conseguem reproduzir o estarrecimento de um plano pelicular de «Aurora». Daí que, no final, o nascimento do sol pareça queimar a própria fita; é da película que surge o assombramento, da possibilidade de fotografarmos o mundo como paisagens queimadas por um olho obsessivo que ilumina os rostos e os corpos como deuses do seu próprio mundo.

É, antes do mais, um melodrama modelar para outros grandes clássicos que se lhe seguiram (desde Minnelli, a Cukor) e habita, justamente, nas mesmas fraquezas que nos tornam assustadores e encantatórios, nos limites da nossa identidade. «Aurora» revisita um casal (George O’Brien / Janet Gaynor) contaminado pela presença de uma terceira parte: a «mulher da cidade» (Margaret Livingston). Levado ao extremo dos seus limites, os dois protagonistas, ligados umbilicalmente por uma força que consome a repulsa, redescobrem-se no amor que julgavam perdido. Em boa verdade, há um sentido trágico que acompanha todo este melodrama e que desembocará, seja de que maneira for, nas águas daquele mar. É nessas águas que se jogam os destinos dos personagens: assustados pela morte, mas despertos pela possibilidade do renascimento. Uma obra prima absoluta e intemporal, a (re)descobrir no cinema Nimas, em cópia restaurada.

Tiago Pimentel

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