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Um site para pensar sobre tudo e chegarmos sempre a um singular pensamento final: sabermos que nada sabemos.
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Tiago Pimentel
Críticas dos leitores para: tiago_pimentel@hotmail.com

terça-feira, janeiro 17, 2006

A informação pessoal, a Internet e o Hi5

- O fim da palavra eu


Há uns meses recebi um convite, por e-mail, para aderir a esse site Hi5 (que explicarei, detalhadamente, mais à frente). No princípio não liguei, já que me parecia um caso meramente pontual. Depois de receber vários convites, de vários amigos, resolvi registar-me e perceber de que se tratava. Durante uns tempos visitei e usei algumas das suas ferramentas, mas rapidamente me apercebi da imensa futilidade em que tudo aquilo se decidia. Como consequência natural, deixei de utilizar o Hi5, mas só com o tempo é que, confesso, me apercebi dos efeitos nefastos e surpreendentes que tem surtido nas pessoas e pela forma leviana como é encarado. Decidi que abandonar o Hi5 não chegava, e acabei mesmo por remover a minha conta e escrever este texto. Aliás, este meu texto pode até ser lido como uma experiência laboratorial do género: “Eu estive lá, usei, não gostei e saí.” Porque o fiz? Por várias razões, algumas das quais enunciadas neste texto. Mas, em última análise, creio que o fiz apenas para ser coerente comigo mesmo.

A tecnologia é sempre um pau de dois bicos: se, por um lado, precisamos das máquinas que inventamos, por outro, não podemos deixar de as questionar. E a Internet é muito pouco questionada e reflectida, na actualidade, sobretudo no campo do concreto. Qual é a diferença entre o registo num fórum temático de debates e num site de cruzamento de informações para encontros de amizade/amorosos? Ou o registo da nossa informação num desses sites de encontros amorosos e num site de identidade pessoal como o Hi5? Nas infinitas potencialidades da Internet, começa a ser difícil impor uma fronteira que resguarde a nossa vida pessoal da exposição pública. A Internet veio também dar visibilidade a qualquer um, isto é: qualquer um pode ser lido/ouvido/visto. Se, por um lado, isto devolveu algumas pessoas à escrita, por outro, banalizou quase por completo, algumas formas de escrita e a responsabilização de conteúdos que lhe está subjacente. Foi, então, com relativa naturalidade, que os blogues tomaram conta do espaço virtual e assumiram-se como o formato definitivo do cronista contemporâneo. Seria preciso uma hipocrisia desumana da minha parte para criticar os blogues... num blogue. A minha primeira preocupação não reside aí; é exterior e anterior a essa questão. Tem a ver com o autor, com o responsável do espaço. Dar o direito, a qualquer pessoa, de ser visitada por uma fatia significativa da população mundial, implica, também, uma responsabilização agravada dos conteúdos. Dito de outro modo: que informação estamos a partilhar e de que forma é relevante? E para quem? Confesso que fico sempre desconcertado ao encontrar blogues que existem para divulgar ao mundo qualquer informação, da mais insignificante à mais íntima, simulando um falso diário pessoal que sustenta a sua durabilidade no tempo com o input de toda e qualquer informação. O que interessa é estar actualizado e ter novos textos todos os dias. A mensagem transmitida é clara: o conteúdo da informação não é importante, o que interessa é existir sempre algo para ler, para dar a ilusão de relevância e empenho. Estaremos a perder o valor precioso da informação? De um texto...

Em boa verdade, a Internet parece-me favorecer – como qualquer dispositivo que oferece autonomia – uma existência arbitrária de conteúdos que acaba por ter um dos seus zénites, de momento, no famoso site Hi5. Para quem não conhece, o Hi5 é um site que funciona como base de dados para qualquer pessoa com um endereço de e-mail válido. O site reúne várias informações pessoais dos seus utilizadores (estado civil, idade, cidade, filmes preferidos, interesses, músicas, etc.), fotografias, bem como permite uma árvore de amizades que se estende de utilizador para utilizador. Pondo a questão de uma outra forma: é a maneira mais impessoal de “conhecermos” as pessoas. É tudo uma coincidência arbitrária: estamos todos aqui, sem estarmos. Será que estou a levar isto demasiado a sério? Claro que sim, caso contrário nunca escreveria sobre isto. É uma temática demasiado preocupante. Aliás, tanto mais preocupante quanto é encarada com ligeireza. Um pouco à semelhança das novelas: ninguém leva a sério, mas quase todos vêm. Na sua ligeireza, vai ocupando espaço no mundo, através da habituação. Quem me conhece sabe que sempre fui um detractor das novelas e do discurso televisivo mais simplista e redutor. E se há discurso que não tolero é dizerem-me que levo isso demasiado a sério. Claro que sim! Sinto o “meu” mundo a ser ocupado progressivamente por estes objectos que não são para serem levados a sério e, de repente, eles são uma parte considerável do real. Como disse Gordard, uma vez: “O meu país está ocupado pela televisão.” E por “país”, Godard referia-se ao cinema. E preocupa-me, de facto, que o Hi5, um passatempo que a sensibilidade comum diz não levar a sério, ocupe já um espaço tão significativo da nossa vida social e afectiva. É bom não esquecer que estamos a falar de um site que promove a comunicação e amizade entre pessoas, colocando-as em ligações arbitrárias, promovendo, não só a comunicação gratuita e banal através de mensagens, bem como da sua publicação, tornando-a evidente à vista de todos.

Não quero ter um discurso demasiado pessimista, até porque, nestas coisas, é essencial desdramatizar, quanto mais não seja porque o discurso demasiado negro e sério corre o risco... de não ser levado a sério. Mas há uma frase de Roland Barthes, crítico francês de literatura e da sociedade, que ajuda a compreender como é importante o que escrevemos (no limite, o que partilhamos com os outros): “Naquilo que se escreve, cada um defende a sua sexualidade.” De facto, há algo de literalmente radical nesta frase que ajuda a perceber como é importante o que escrevemos, o que mostramos, ou o que partilhamos de nós. Em última instância, como essa frivolidade assumida da nossa “identidade digital” acaba por deteriorar o nosso próprio plano identitário. Não somos mais do que um conjunto de informações vagas e genéricas, descontextualizadas e redutoras. E essa simulação identitária é disponibilizada na Internet com o pretexto de nos unirmos de forma totalitária e global. Mas unirmos de que formas? A utopia, na sua génese mais abstracta, poderá ter interesse académico, mas na prática que interesses humanitários e ecuménicos estamos a servir, ao colocarmos milhões de pessoas num mesmo espaço, como escravos de uma comunicação global que tem como ponto de partida um currículo de interesses e fotografias pessoais? Estaremos a passar a mensagem de ser legítimo agrupar as pessoas por interesses e compleição física? Que mensagem está a ser passada sobre a construção de relações humanas? As relações humanas constroem-se, sobretudo, no desequilíbrio do imprevisto; em conhecermos pessoas literalmente por acidente. Isto é, em conversas diárias, em interacção física, ganhando o prazer de as conhecermos para lá do seu portfólio mais imediato e, a partir do qual, se calhar nem teríamos interesse em conhecê-las logo à partida. E sites como o Hi5 promovem o negativo disto. Isto é: cada pessoa pode ser vítima de um catálogo de interesses e estará implicitamente a competir social e fisicamente com outros perfis disponíveis. Um pouco à semelhança dos catálogos dos super-mercados, com fotografias e informações específicas dos produtos em comercialização. E, sejamos frontais, a componente física continua a ser a mais decisiva e, num certo sentido, será sempre uma relação com dimensão semelhante à relação superficial de bar ou discoteca.

Enfim, como qualquer realidade perniciosa, terá as suas alegadas vantagens, como reunir velhos colegas de escola, fãs de uma banda ou de um artista, e pode servir como ponto de partida para algo mais. Mas é esse ponto de partida que importa questionar. De onde estamos, afinal, a partir? E para onde nos dirigimos? Dito de outro modo: que futuro desejamos para o relacionamento entre pessoas? Que rituais estamos a promover? Ninguém parece muito preocupado com isto, até porque o Hi5 não mexe com as consciências de forma séria. É apenas um site que serve uma certa curiosidade gratuita de espiarmos os outros, numa lógica de peeping tom directamente importada dos dispositivos de reality shows televisivos, onde a vida dos outros pode e deve ser exposta e, pior ainda, pode ser avaliada e julgada pelos outros. A lógica é a mesma, mudam-se as formas de apresentação apenas. Mas as pessoas não parecem muito preocupadas, até porque continuam a navegar pelo Hi5, conscientes de que o fazem sem grande importância e apenas por lazer. Mas estas coisas que, afinal, não têm grande importância, começam a ocupar um espaço demasiado importante no continente humano de cada um, desde o Morangos com Açúcar, até ao reality show 1ª Companhia, passando por todas as novelas que ocupam o espaço nocturno da nossa televisão, e acabando em sites de exposição pessoal, onde o Hi5 é apenas mais um, embora seja talvez um dos mais ocupados (em Portugal é, seguramente, o mais visitado). Inconscientemente, todas estas formas de lazer aparentemente inofensivas, estão a ocupar espaço em nós, no nosso imaginário intelectual e afectivo. Estão a criar as suas próprias regras, o seu próprio ecossistema, a enraizarem-se nas consciências mais desatentas e a desenvolverem o seu próprio estatuto social.

Tiago Pimentel

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