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Tiago Pimentel
Críticas dos leitores para: tiago_pimentel@hotmail.com

sábado, fevereiro 04, 2006





Munique, de Steven Spielberg

Classificação:


A lista é morte

Quando «Munique» estreou, já Spielberg tinha prometido uma campanha longe das promoções tradicionais dos seus filmes – ou, para todos os efeitos, para qualquer filme com ambições de chegar ao Oscar. Prometeu uma campanha de silêncios, devolvendo ao filme (e ao cinema) a sua própria ditadura de promoção. Cumpriu, o filme ressentiu-se nas nomeações e foi mal interpretado por grande parte da imprensa americana, lendo-o como um postulado político enviesado, embora não existisse consenso em relação ao lado para o qual o filme penderia (uns afirmam a pés juntos que é pro-palestiniano, outros que favorecia Israel). E, no meio desta questão ideológica secundária e simplista, Spielberg decidiu que era tempo de aparecer e defender o seu filme.

E, de facto, «Munique» não é um filme panfletário que defenda uma causa ou um lado; é, antes do mais, um filme que questiona a génese de qualquer conflito entre seres humanos, culturas ou civilizações. Existe espaço para todas as ideologias falarem e justificarem-se sem correrem o risco de serem julgadas. Ou seja: o filme não tem uma perspectiva moral sobre nenhuma ideologia em particular, apenas uma crueldade trágica sobre a morte que nelas se instala. Em boa verdade, não há maior equívoco do que entrar para este filme à espera de confirmarmos as nossas convicções políticas, sejam elas pro-israelitas ou pro-palestinianas. Nada mais poderemos confirmar do que a desintegração humana de qualquer forma de violência. Não só a violência contra os outros, mas também a violência dentro de nós. Dito de outra forma: ao matar os outros, Avner vai morrendo também. A morte de Avner (sublime Eric Bana!) – ou a morte da Humanidade – podia ser o subtítulo deste filme, onde tudo se decide na desintegração dos valores humanos e na irreversível caminhada para o fim. Que fim? O nosso.

E «Munique» é o filme mais triste do mundo. Mais do que triste: é secamente desencantado na sua irredutível crueldade. No início, mostra-nos uma reconstituição do atentado de Munique, durante os Jogos Olímpicos de 1972, com imagens televisivas do jornalismo de época, para o espectador ser confrontado, de uma vez só, com o realismo inequívoco das imagens que lhe chegam, bem como da impossibilidade de as descobrir na sua intimidade. E «Munique» pode ser (e é) também a reconstrução de uma intimidade assustadora com o nosso terror(ismo). Não é, de todo, acidental que o filme se construa como um thriller interior ao dispositivo dos grandes filmes de espionagem dos anos 60 e 70 e vá, progressivamente, mergulhando na intimidade do protagonista. Ao mesmo tempo, pontua a narrativa com a desconstrução do atentado de Munique através de inserts em flashback que, sabemos, assombrarão para sempre a memória de todos. A primeira parte é, provavelmente, o melhor thriller de sempre: não só pela encenação milimétrica e pelo ritmo pulsante das suas imagens, bem como pelos corpos humanizados que nelas se instalam e cuja irreversível tragédia existencial acaba por transcender qualquer moral política ou ideológica que restabeleça algum conforto.

Se mais não existisse (e existe), «Munique» seria um prodígio técnico de montagem, mise en scène e fotografia. Spielberg volta a descobrir o zoom como uma opção moral de redimensionar o espaço físico e dramático. De repente, as coordenadas e os sentidos do mundo baralham-se e a insegurança do seu espaço instala-se, de forma inequívoca, nos corpos que o tentam perverter. É uma opção dramática, de facto! Mais do que uma estratégia formal de convocação de técnicas do passado (estou a pensar nas câmaras liberais do cinema dos 60’s e, sobretudo, no fascínio da Nova Vaga onde tudo parecia possível), o zoom assume-se aqui como uma renovação das formas de filmar do presente. A primeira dúvida instalada no espaço dramático e moral do filme surge, precisamente, no momento que precede a primeira morte, quando Robert (Kassovitz) pergunta desesperadamente: “E agora?” Não é, de facto, fácil confrontarmo-nos com a incerteza das nossas convicções, quando somos colocados no mesmo plano prático que acreditamos combater. É tanto mais perturbante quanto nos apercebemos que, de facto, o nosso terror frente a uma indecisão destas é aguardarmos, com uma perversa ansiedade, que os assassinos disparem. Entenda-se: não porque queremos ver os outros mortos, mas porque não sabemos lidar com a espera, com a presença iminente mas inacabada da morte. É uma perversão hitchcockiana (helás!), mas é tanto mais perturbante quanto se instala na nossa realidade pós-11 de Setembro, em que o terrorismo se tornou, de igual forma, numa presença iminente e inacabada do nosso mundo. «Munique» é uma espécie de terceiro vértice sobre a trilogia do pós-11 de Setembro que o cineasta iniciou em «Terminal» e continuou em «Guerra dos Mundos».

O mundo dos lugares-comuns (o tal que divide o cinema de Spielberg em «sério» e «infantil») irá fazer o contraposto com a obra prima intemporal «A Lista de Schindler». Em boa verdade, parece-me bem mais dificil lidar com este «Munique», por duas razões: primeiro, porque, apesar de «A Lista de Schindler» (maioritariamente por causa da personagem de Fiennes) desmentir qualquer maniqueísmo, historicamente é bem mais simples identificar o lado do bem e do mal e olharmos para o Holocausto como uma tragédia da História que já passou; e, segundo, porque o filme é, justamente, o negativo de «A Lista de Schindler». Se, nas palavras de Ben Kingsley, a Lista era vida, em «Munique», a lista é morte, de facto. Ou ainda: Quem mata uma vida, mata o mundo inteiro. O último acto de «Munique» é particularmente angustiante e triste. A tragédia do herói spielberguiano nunca foi tão negra e o seu regresso a casa é comprometido por uma errância irreversível. É, novamente, a tragédia de David em «A.I. – Inteligência Artificial»: o seu regresso a casa é uma ilusão! Mas, ao contrário de David que faz por ganhar a sua Humanidade, Avner (o herói mais negro da filmografia de Spielberg) perde-a lentamente. E é tanto mais trágico quanto podemos identificar em Avner uma assustadora metonímia: o seu trajecto pode sustentar, em si mesmo, o fim da Humanidade. Nunca Spielberg foi tão cruel para os seus heróis como o foi com Avner. E não podia ser de outra forma: as personagens de «Munique» transportam, em si, a clarividência das suas posições ideológicas e o desejo inabalável de terem um espaço no planeta onde possam construir uma casa e uma família, mas também o sangue das vidas que tiraram.

A reflexão existencial e filosófica do estado do mundo em «Munique» é, de facto, anti-televisiva. Ao contrário das imagens de violência normalizada que a televisão nos faz chegar, impondo-nos o choque da sua brutalidade, a violência de «Munique» é anterior e interior a esse choque. Ela existe, antes do mais, dentro dos próprios corpos, nas suas incertezas e inadvertidas crueldades. E Avner é um dos filhos dessa crueldade, consumido até na sua intimidade. A polémica cena de sexo foi, de uma vez só, das mais geniais e cruéis que alguma vez assombrou uma tela de cinema: a impossibilidade de Avner amar fisicamente a mulher redu-lo à condição de animal que já deixou de viver, para apenas sobreviver (o polémico plano em câmara lenta sublinha-o, de certa forma).

É uma oração pela paz rezada no mais tenebroso inferno. É, no limite, uma das maiores obras de arte da História, um objecto histórico e central de qualquer livro de cinema, relembrando-nos que o mundo não se constrói apenas de terrorismos exteriores ao nosso espaço, como tantas vezes a televisão parece insinuar. É na sua infinita tristeza e no seu inabalável pessimismo que «Munique» nos devolve a vontade de repensarmos o mundo e as suas regras, exterior ao discurso determinista que dividide a Humanidade em focos ideológicos e religiosos, devolvendo-nos, também, o nosso direito exclusivamente humano de chorarmos e sofrermos. Um objecto imortal!

Tiago Pimentel

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