A Vila
Class.:
Shyamalan vive, nos tempos que correm, estigmatizado pelo seu próprio autorismo. Ou seja, o estigma do “twist” parece, cada vez mais, uma exigência do público e crítica do qual Shyamalan se terá de resgatar. E, para já, A Vila parece ser esse sopro de liberdade que o cineasta, de peito cheio, deitou cá para fora. Foi muito criticado por isso, mas talvez sirva para se renovar e alargar os seus horizontes autorais. E A Vila é mesmo um dos seus filmes mais completos, complexos e tecnicamente perfeitos. Voltamos aos fantasmas de «O Sexto Sentido», os ditos mortos que se passeiam pelo presente com os costumes do passado, sem se verem, sem se conhecerem, inconscientes do tempo que habitam. Sem nunca terem atravessado a fronteira por medo do que os espera ou pela negação.
Desta vez, as assombrações não são amigáveis nem pretendem ajuda, são monstros tenebrosos que habitam o «outro lado» de uma floresta densa onde os pacatos habitantes da vila têm co-habitado ao longo de anos. Mas A Vila é muito mais que um filme de monstros (como, de resto, já o eram todos os filmes anteriores desde «O Sexto Sentido»). Os monstros são sempre metáforas para as nossas fragilidades humanas que exorcizamos como podemos. Extensões do nosso Ser que persiste em absorver sinais e metáforas como analogias da sua existência. Um pouco como os extraterrestres que Shyamalan coloca no núcleo familiar da personagem de Mel Gibson, como se desse arrastamento se transportasse a cura para a letargia do corpo. Sim, porque os heróis de Shyamalan são sempre personagens debilitados por uma letargia perturbante, como marionetas a quem se cortaram alguns dos fios, isolados do mundo por uma paralesia emocional, como se todas as emoções humanas convivessem num único corpo em conflitos inesgotáveis baralhando todas as cores e invalidando a verbalização do desejo.
É um filme que absorve a condição do mundo actual sem panfletarismos políticos; antes, compreende o medo que assombra o presente e constrói uma história composta por uma comunidade de personagens (como se os corpos dos filmes de Ford pudessem aqui renascer mais letárgicos e sussurrantes como espíritos com medo de revelarem um segredo) que se isola do mundo, da impureza, da maldade tentando recriar um conceito humano de bondade, pureza e inocência. É nessa inocência que adultos de 30 anos correm e pulam como crianças. É nessa pureza que descobrimos o brilho angélico no olhar de Bryce Dallas Howard. Mas a ironia máxima desta tragédia «bergmaniana» (sim, é possível reconhecer Bergman e Dreyer na paralesia pictórica que algumas imagens parecem chorar) é introduzida por um estranho elemento sobrenatural. De facto, para poderem sobreviver afastados do mundo, os habitantes da vila respeitam um pacto com umas estranhas e monstruosas criaturas que vivem nos bosques.
Não deixa de ser curioso que, para se isolarem do medo que contamina o mundo, tenham de conviver com outras formas de medo e terror. Em boa verdade, o medo não é apenas um objecto geográfico como já Kubrick o ilustrara em «The Shining». É, acima de tudo, uma componente especificamente humana, impossível de separar da carne. Por mais que se construam comunidades ou vilas isoladas do mundo, esse medo específico (a cor má) faz parte da nossa pluralidade. O ser humano é uma pintura abstracta de emoções e pensamentos onde todas as cores convivem sem ordem nem exclusão. A Vila é um filme que nos fala da procura do amor. No limite, é apenas isso que interessa, pois dentro do amor escondem-se todas as cores. É na procura do amor, sob todas as suas formas, que se escondem todas as cores que se querem “lá fora”. Sem grandes hesitações, um dos filmes decisivos de 2004. Um filme que dá vontade de parar e pensar.
Tiago Pimentel