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Um site para pensar sobre tudo e chegarmos sempre a um singular pensamento final: sabermos que nada sabemos.
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Tiago Pimentel
Críticas dos leitores para: tiago_pimentel@hotmail.com

quarta-feira, março 31, 2004

E o Euro?

Primeiro o Benfica e agora a selecção. O futebol português não anda mesmo nada feliz com equipas italianas. Mas as semelhanças entre os dois casos são praticamente inexistentes. Se com o Benfica foi um erro de ajuste táctico (10 minutos que custaram uma eliminatória, e tudo porque o Inter alterou a estratégia de jogo), já com a selecção a conversa é outra bem diferente. Eu percebo a insistência em manter os jogadores da velha guarda, os tais da «geração de ouro» do nosso país (Figo, Rui Costa, Fernando Couto, ...) mas começam a ser evidentes os conflitos geracionais dentro do campo. O futebol de Figo é outro completamente diferente do de Cristiano Ronaldo, por exemplo. O espírito é outro. Não quero com isto dizer que, numa selecção nacional, não possam existir jogadores de várias idades. Mas em Portugal, as diferenças não são apenas de idade ou de anos de rodagem; são, sobretudo, de filosofias de jogo. Há um Figo a passear a sua imagem pelo campo, sem a garra de outros tempos, a ver passar nas suas barbas, a uma velocidade que só o tempo pode favorecer, outros jogadores se calhar mais decisivos e num equilíbrio mais harmonioso com o resto do conjunto. Custa tomar a opção de tirar um Figo do lote de principais. E o nosso selecionador não o vai fazer, certamente. Até porque, ao tirarmos Figo, perdemos a experiência. E quem diz Figo, diz Fernando Couto por exemplo. É uma balança difícil de equilibrar. E, no entanto, as coisas continuam completamente desequilibradas em campo. Uns primeiros 20 minutos de excepção, ao melhor nível do futebol mundial. Mas e depois? Faltam soluções, falta persistência. Falta, também, um bocadinho de frieza no jogo (e a Itália é, a seguir à Alemanha, a selecção mais fria da Europa). E por fria não se entenda um sentido negativo ou de anti-jogo. É jogo, claro: o jogo de queimar a paciência ao adversário. O jogo de segurar uma equipa impaciente por oferecer golos ao seu público mas incapaz de manter uma coerência de jogo. Scolari assegura que os resultados não interessam, que estamos apenas em fase experimental. Estamos a escassos meses do Euro e começa a ser difícil acreditar numa boa prestação. Mas é bom acreditarmos também que o que se passou no relvado hoje, é improvável voltar a acontecer durante o campeonato. Se tivermos que perder, que percamos tudo agora...

Tiago Pimentel

domingo, março 28, 2004

Duas ou três palavras sobre o encantador Belleville Rendez-Vous, antes de abandonar a clarividência do olhar e entrar na incerteza do outro lado da consciência (modo mais elaborado de dizer que estou com sono mas apeteceu-me evidenciar esta animação francesa). Gosto das personagens, dos desenhos abstractos, porque na abstracção convive-se com a beleza do mudo (ou, por consequência, com a imposição absoluta da imagem). Porque é na sua simplicidade que convivem as mais estimulantes especificidades da arte enquanto expressão dos traços de um certo humanismo. Que humanismo é esse? Ou, colocando a questão de outra forma, que arte é essa? É a arte de reconverter as relações humanas num ritual de sons, olhares e subtilezas faciais. É o regresso às potencialidades pictóricas do cinema que desafiam a inteligência e a sensibilidade do nosso olhar.

Tiago Pimentel

terça-feira, março 23, 2004


To those who are about to rock, I salute you.

School of Rock, de Richard Linklater

Classificação:


Este filme estará destinado a ser olhado, de uma forma redutora digo eu (e, também, em função da forma como foi promovido), como uma banal comédia para miúdos. É uma pena, já que me parece um dos objectos mais fulgorantes saídos das entranhas da comédia, nos últimos tempos.

Jack Black é genial, o outro lado de Chaplin (onde a magreza de Chaplin lhe dava o burlesco desengonçado dos seus movimentos, o porte de Black possibilita-lhe também a renovação de toda uma coreografia física de humor). É necessário olhar para Escola de Rock em duas perspectivas: o filme, com uma coesão inabalável, uma estrutura de humor perfeitamente definida e uma nostalgia profunda pelo espírito Rock que se acredita perdido; e o one-man-show de Jack Black, a forma como se multiplica por várias presenças e liga todas as partes do filme.

Mais do que uma lição de cinema, é uma prova de fulgor, de vida! Não é apenas o prazer de rir; é, sobretudo, o prazer imenso de chocarmos com a complexidade imensa do humor enquanto criação artística e arma de combate aos que ainda pensam que a comédia é um género menor.

Tiago Pimentel

domingo, março 21, 2004

O Insustentável Peso da Ignorância

De facto, pasmo a olhar para as notícias. Nove dias depois dos atentados em Madrid, inúmeras manifestações pedem a paz e a retirada das tropas militares do Iraque e Mário Soares (homem que aprendi a admirar) acha que a melhor solução para acabar com o terrorismo é o diálogo. E, no meio disto tudo, é incrível como ainda se anda a discutir se havia ou não armas de destruição no Iraque, como se isso fosse o centro de discussão da necessidade de democratizar o Iraque e destituir uma ditadura que ameaçava, em qualquer perspectiva que queiramos discutir, a segurança mundial. Acho que já é tempo de deixarmos de discutir se a intervenção militar no Iraque foi, ou não, correcta. Foi feita e não se pode agora voltar atrás e deixar um país sem ordem nem autonomia. Poucos dias antes das eleições espanholas, um atentado terrorista em Madrid colocou o medo na Europa. É importante que isto seja dito. Quando aconteceu o 11 de Setembro, o europeu reagiu de uma forma comodista e amedrontada como é, aliás, sua característica. Ou seja: "o atentado aconteceu do lado de lá do Atlântico, os americanos que lidem com isso. Quanto menos sobrar para nós melhor." Como se a Al-Qaeda fizesse distinções dentro do mundo ocidental. Aliás, como se eles fizessem distinções fora do seu mundo e de quem não aceita a sua religião.

A seguir ao 11 de Setembro, os americanos perceberam que tinham que fazer alguma coisa e aperceberam-se, como qualquer habitante deste planeta mais atento já terá percebido, que a luta contra o terrorismo é uma espécie de luta contra o invisível. Isto é, não é possível apontar para um sítio no mapa. O Iraque surgiu num contexto de correcção daquilo que, há 12 anos, estava a funcionar mal: o controlo de armas de destruição num país governado por um criminoso. Na altura, ouvi os comentários mais absurdos que exigiam que, se o Iraque tem que ser confiscado, porque é que os EUA não terão que sê-lo também? A memória do pensamento contemporâneo é tão curta (ou faz por sê-lo) que já ninguém se lembrava que se tratava do mesmo homem que, dozes anos antes, invadiu o Kuwait. É um governo criminoso e, como tal, não pode ser permitido o acesso a armas de qualquer natureza que coloquem em causa a segurança mundial. Se juntarmos a isto o facto de Saddam não deixar que os inspectores da ONU passassem as fronteiras para verificar a existência, ou não, das ditas armas, é fácil de imaginar que, num clima de pós-11 de Setembro, os americanos decidissem acelerar as “negociações”.

Também não é difícil de perceber que o europeu, no seu despreocupado comodismo, pensasse que o único inimigo de Al-Qaeda eram os EUA e que, a haver alguma intervenção militar, seria da exclusiva responsabilidade do governo de George W. Bush. Ontem, ao ver o apanhado da Contra-Informação de Sábado, voltei a ouvir as mesmas piadas recorrentes sobre as armas de destruição no Iraque. Aliás, é muito típico do habitante europeu ligar-se de forma falsamente nostálgica a um passado que julga ainda definir compromissos morais. Isto deu origens a comentários como “pois, querem tirar o Saddam de lá, mas foram os americanos que o lá puseram” ou “foram os EUA que deram armas ao Iraque e agora queixam-se do quê?” Quer dizer, como se isto fosse avalista automático de se praticarem actos criminosos e invalidasse que os EUA pudessem agir em legítima defesa. São apenas dois exemplos, mas havia ainda quem fosse buscar o caso do Chile (só faltava mesmo falarem nos índios...). A seguir ao 11 de Setembro, era natural que os EUA acelerassem a sua política externa e pressionassem a ONU para ultrapassar as suas limitações burocráticas. O Iraque andava a gozar com as ferramentas e instituições do mundo ocidental e, ainda por cima, pertence ao mundo islâmico tornando-o um potencial colaborador com forças terroristas. Mas agora, mais do que nunca, já não interessa discutir a legitimidade da guerra. Ela está feita, agora interessa dar ao Iraque condições para se autonomizar e garantir qualidade de vida. É importante que os países à sua volta se apercebam que a qualidade de vida aumenta, de facto, com a queda de uma ditadura.

Mas, agora, algo de muito novo sucedeu. O problema deixou de estar apenas do lado de lá do Atlântico. Os terroristas da Al-Qaeda atacaram na Europa. O medo chegou à Europa e, ainda assim, a generalidade dos europeus ainda prefere acreditar que foi a união da Espanha aos EUA que originou este ataque. Ou seja, enquanto não nos tocar a nós, vamos ficar quietinhos sem fazer nada porque o problema é vosso. Foi assim que muitos estadistas europeus pensaram, na altura do 11 de Setembro. E se amanhã houver um ataque na França? Vamos culpar a lei do véu? E se o atentado for na Alemanha? Vamos culpar a coligação das Nações Unidas na intervenção militar no Afeganistão? Quando é que vamos parar de tentar atribuir culpas e assumir, de uma vez por todas, que o alvo do terrorismo islâmico sempre foi o mundo exterior às suas fronteiras? Quando é que vamos perceber que Al-Qaeda não faz distinções geográficas, apenas religiosas? Quando é que vamos parar de inventar culpas para o passado e começar a reflectir sobre o presente? Confesso algum medo. Não é um medo específico. Não tenho medo de entrar no metro ou num centro comercial. Tenho medo da nossa ignorância. Tenho medo que o nosso medo nos custe caro. Tenho medo que este onda de terror desmembre a UE como a conhecemos num conjunto de actos sucessivos de desresponsabilização. Tenho medo da incompetência política de estadistas como Zapatero que, depois do povo espanhol ter redefinido o governo como Al-Qaeda pretendia, declarou que iria retirar as tropas espanholas do Iraque concluindo a vitória política total dos terroristas islâmicos. Tenho medo das nossas reflexões intelectuais enfadonhas e ineficazes, em absoluto, para a evolução da segurança mundial. Tenho medo do nosso comodismo. Tenho medo de ser europeu.

Tiago Pimentel

terça-feira, março 16, 2004

Há poucos dias atrás fui rever o magnífico Lost In Translation e fiquei atento a algumas reacções no final do filme. Devo dizer que fico sempre um pouco agastado quando ouço coisas como «Mas que parvoíce, isto não é nada realista, então eles vão os dois para a cama e não acontece nada?», «O gajo tem cara de parvo.» Mesmo sabendo que o respeito pelo gosto do próximo é sempre uma das máximas que aprendemos a seguir, deveria também existir uma máxima ainda por cima dessa que dissesse algo do género: não comentarás o filme sem dedicares um ou dois neurónios à sua especificidade. A maior parte das vezes, creio que nos cruzamos com fenómenos absolutamente apaixonantes e nem nos damos conta. Talvez porque as filtragens da nossa sensibilidade o não permitam, ou porque nos decidimos a não pensar sobre as subtis variações dos fenómenos humanos exteriores à nossa curtíssima esfera pessoal. Claro que, ao vermos Lost In Translation, apercebemo-nos que o sexo é uma das componentes estranhas áquele espaço concreto, correndo o risco de o contaminar e acabarem, os dois, por se aproximarem de algo que queriam, naquele momento, fugir: o casamento (ou, no limite, o amor...). Daí que este filme de Sofia Coppola nunca me tenha parecido uma história de amor... nem sequer de amizade. Gosto mais de pensar que é uma história sobre uma relação. Uma relação tão pura que nunca se sabe bem o que é. Uma relação onde é possível dar um amoroso beijo na boca, ao mesmo tempo que se dá um amigável e carinhoso abraço. Gosto de olhar para este filme e aperceber-me que a verdade existe sempre na convulsão do meu olhar. Porque, em última análise, as duas personagens deste filme transfiguram-se nos ecos mais íntimos dos nossos desejos: no desejo da felicidade pura, em conseguir respirar uma imagem sem pensar na próxima. É por isso que se deitam na cama, como duas paisagens que descansam na serenidade que o momento oferece. O tal momento onde não é necessário pensar no que vem a seguir; o momento em que se deitam numa cama, mas podia ser num banco de jardim, a simbologia não interessa, apenas a proximidade. Num filme todo ele assombrado pela sugestão de nada se passar, podendo dar a sensação de pedir muito pouco ao espectador. Passa-se precisamente o contrário: a imponderável serenidade das imagens reflecte apenas o olhar de cada um. Se não estivermos dispostos a olhar e a procurar essa serenidade, o filme nada nos dirá. Talvez a verdadeira beleza esteja aí, numa sensibilidade específica, limpa dos preconceitos que contaminam o pensamento sócio-cultural contemporâneo. Pode parecer uma contradição. No início do texto digo, a determinada altura, que esta não é uma história de amor; que os dois fogem de ter uma relação amorosa. Mas será que o amor no seu estado mais puro não passará também pelo puro prazer de estarmos juntos?

Tiago Pimentel
Com falta de melhor comentário, aqui fica o conselho: Vejam School of Rock! Provavelmente, a melhor comédia dos últimos tempos.

Tiago Pimentel

segunda-feira, março 08, 2004



A Paixão de Cristo

Class.:

Site Oficial

A Noite dos Mortos Vivos


O filme de Mel Gibson corre o risco de ser lido como um fenómeno sociológico nas comunidades católicas espalhadas pelo mundo e menos como um acontecimento cinematográfico. Talvez não seja desadequado, de todo, esse pensamento até porque a questão central de A Paixão de Cristo não é o espiritual, mas antes recordar (e exagerar) o sofrimento de Cristo na sua caminhada até ao Calvário e esperar que o espectador caia que nem um patinho na ratoeira manipuladora e maniqueísta que Gibson nos preparou. A fé e a religião não existem porque o Bem tem que lutar contra o Mal; existem porque o Homem, numa altura específica da sua vida, tomou consciência da sua própria mortalidade e da forma como decide orientar a sua vida. Tudo aquilo que existe neste filme gore de Mel Gibson são ícones (an Icon Production?) e não pessoas. Cristo é um ícone, um conjunto estereotipado de ideias e frases vociferadas por um corpo sem qualquer conflito dramático com os desafios humanos que enfrenta. Ao contrário do Cristo de Scorsese que, no limite, não se construía a partir do seu lado divino, mas antes no seu conflito humano: porquê eu? No entanto, é importante sublinhar o trabalho notável de James Caviezel na reprodução exacta daquela que parece ser a figura crística que todos reconhecem. Embora não tenha espaço para uma composição dramática completa, é um trabalho claramente acima de tudo o resto.

A Paixão de Cristo são 2h15min de um espectáculo de sangue e carne que desafia o realismo de qualquer filme gore. Aliás, a cena da ressurreição, tão elogiada nos EUA, parece-me um dos grandes gags do filme. Sem querer estragar a cena a ninguém, essa sequência (a cena final, precisamente) parece recuperar a velha tradição de Romero e pedir uma sequela intitulada “A Vingança do Cristo”. Bom, não será de admirar que as diferentes leituras deste filme se encontrem limitadas pelo seu próprio dispositivo de promoção. Ou seja, um filme que foi promovido como uma experiência profundamente religiosa será, seguramente, olhado como uma espécie de revelação interior da fé de cada um e muito menos como um objecto cinematográfico. Mas o truque máximo de A Paixão de Cristo é aproveitar a imagem e densidade que a personagem de Cristo já ocupa no pensamento crente da maioria da população mundial e torturá-la até não poder mais, sem precisar de lhe dar uma presença genuína. Aliás, o efeito é desconcertante, nenhuma personagem parece existir neste filme; parece um teatro de marionetas, de fantoches programados a obedecerem a todos os clichés e estereótipos a que o maniqueísmo mais banal pode recorrer. Ou não fossem os soldados romanos orcs feios, porcos e maus e o diabo careca com um bebé ao colo. É um filme sem subtileza cinéfila nenhuma, sem alma nem espiritualidade e com uma mala religiosa roubada de uma tenda da feira da ladra. Não fosse o hiper-realismo do sangue e dos golpes e algum virtuosismo na fotografia e este seria mais um banal telefilme de Páscoa sobre a vida de Cristo. Assim, não é banal mas não deixa de ser um insulto.

Tiago Pimentel

quinta-feira, março 04, 2004



Paixões

Dia 11 de Março, na próxima quinta-feira, estreia nas salas portuguesas o fenómeno polémico e mediático do momento: A Paixão de Cristo, de Mel Gibson. Como grande parte dos fenómenos cinematográficos que se transformam em alvos de contradições ideológicas, acabam sempre por ser analisados por componentes secundárias e, na maioria das vezes, completamente irrelevantes para o filme enquanto peça artística. É o caso deste filme de Mel Gibson. Mas não se julgue que o realizador de Braveheart não terá aqui a sua quota parte de culpa no cartório, tanto mais que A Paixão de Cristo, antes de ser uma obra cinematográfica, é um genial golpe de marketing. Como transformar uma película falada em aramaico num dos mais lucrativos filmes do ano? Ninguém poderia prever que este filme de Mel Gibson pudesse, ao fim de 8 dias de exibição, somar 153 milhões de dólares. Como o conseguiu? Fácil e, sobretudo, muito inteligente. Mostrando o filme às pessoas certas, às personalidades que definem o pensamento católico do cidadão médio e que poderiam funcionar como missionários evangelistas da boa nova de Gibson. “Ide ver e falai sobre o meu filme” poderia ser uma boa alternativa a alguns dos apregoares de Cristo.

E se a religião é a maior fonte de todas as guerras, também pode ser o mais rico veículo para engordar o box office de um filme. Junte-se isto ao caldeirão de fanatismo religioso que se vive nos EUA e aos extremismos religiosos e ideológicos que contaminam o pensamento mundial e apercebemo-nos do impacto que um pequeno filme sobre a vida de um carpinteiro que morreu crucificado poderá ter nos dogmas íntimos de cada um. Aliás, não é preciso esgravatar muito nas diversas ideologias religiosas, basta verificar já a reacção da comunidade judaica que se revelou fervorosamente contra o filme uma vez que poderia despertar uma nova onda antisemita. Mas não é necessário especular muito sobre as diversas formas de receber este filme. Já temos dados: a crítica norte-americana. Se, por um lado, parece-me incontornável a importância religiosa que se tem dado ao fenómeno (diversas pessoas que se confessam convertidas a Cristo), também é verdade que a crítica profissional tem-se divido em duas posições muito gerais: ou se mostram absolutamente esmagados perante o poder visual, épico e religioso da experiência, ou se ressentem do protagonismo excessivo que a violência assume neste filme. Seja como for, começa a ser difícil centrar o pensamento geral dos americanos na questão essencial: o filme.

A Paixão de Cristo está mais próximo de se transformar na versão cinematográfica da Bíblia católica e ser lido como mais uma variante dos seus valores, do que numa íntima experiência cinéfila das últimas horas da vida de Cristo. Mas será que ainda ninguém percebeu que é possível um não-católico gostar mais deste filme que um católico fervoroso e vice-versa? Será que ainda ninguém percebeu que o mais importante num filme como este não é a confirmação da nossa fé, mas antes a descoberta de novos horizontes que julgávamos perdidos na inércia das nossas emoções? Não são assim os grandes filmes? Aguardemos por este.

Tiago Pimentel

segunda-feira, março 01, 2004




Nova Zelândywood

Depois do intervalo da passadeira vermelha há um ano atrás, o glamour da entrada no Kodak Theatre regressou este ano, demasiado esquartejado pelos intermináveis interregnos publicitários da TVI. Billy Crystal foi também um feliz retorno a estas noitadas introduzindo a cerimónia com um dos mais memoráveis e espectaculares números de entrada em toda a história dos Oscars. Quanto à cerimónia em si, foi das mais fracas dos últimos 10 anos. Por várias razões, mas sobretudo porque falhou a celebração da memória do cinema. Tanto mais que se deu pela falta de mais momentos de antologia cinematográfica a recordar os nomes e os títulos que aprendemos a amar e que a Academia tão bem sabe recordar.

Mas não só, o próprio discurso dos vencedores foi de uma anorexia cinéfila absoluta, sem respeito nenhum pelo passado. Aliás, a Academia preparou o galardão máximo de uma forma absolutamente simbólica: a transferência do Oscar de Spielberg para Jackson. E Jackson nem se apercebeu do valor desta homenagem como um valor simbólico no reconhecimento oficial da Academia pelo cinema fantástico recuperando uma das suas figuras paternas mais determinantes. Em vez disso, Jackson achou relevante agradecer pela enésima vez ao povo e governo da Nova Zelândia. De repente, todos se esqueceram que filmes bem superiores como a trilogia dos Indiana Jones, a trilogia do Star Wars, ET, Encontros Imediatos do 3º Grau, entre outros, tiveram que existir e suportar serem ignorados (mas nunca esquecidos), cerimónia após cerimónia, para este Senhor dos Anéis conseguir finalmente vingar o género. Nada contra a trilogia de Peter Jackson (em boa verdade, acho-a fascinante) mas custa-me que, tanto nos agradecimentos, como na própria produção se tenha esquecido aquilo que ao longo de tantos anos tem sido a eucaristia cinéfila durante cerca de 4 a 5 horas. A saber: a reposição do passado. Ou seja, vivemos a noite dos Oscars, não como uma modalidade olímpica de entrega de prémios, mas antes como uma sessão contínua de imagens perdidas na nossa memória, recuperadas agora em pequenos momentos agregados num todo, numa súmula de memórias cinéfilas que poderiam conjugar um filme em si mesmas: o filme da nossa cinefilia, ou seja, do nosso amor pelo cinema.

Mas tudo isso esteve em regime de dieta na produção da cerimónia deste ano; apenas dois pontos memoráveis com a sublime montagem de vários momentos da carreira da grande Katharine Hepburn e o In Memoriam que começou por recordar Gregory Peck. De resto, foi uma cerimónia enfadonha, sem momentos entusiasmantes, com discursos de agradecimento cujos respectivos recipientes poderiam usar para adormecer os filhos à noite (quanto mais não valia ouvir Bill Murray do que a lenga-lenga de Sean Penn)... No entanto, há que ser justo: Tim Robbins merecia ganhar. O Senhor dos Anéis merecia muitos (não todos) dos Oscars que ganhou, sobretudo se for para premiar a trilogia (justificação que me parece algo desajustada, já que, ou muito me engano, ou os outros dois filmes já tinham ganho Oscars também). Em todo o caso, também não sou apologista de, subitamente, se correr o filme de Peter Jackson com todos os Oscars que se conseguirem desencantar, como se fosse possível premiar três filmes de uma só vez. Não só me parece desadequado como absurdo também que tal aconteça num ano em que concorre com Mystic River. Maiores injustiças foram feitas no passado, nem é preciso relembrá-las (Chicago o ano passado, para citar uma recente), mas não consigo aceitar que, no meio de tantos Oscars, pelo menos o de argumento adaptado não tenha sido entregue a um dos mais perfeitos e milimétricos argumentos dos últimos anos: Mystic River, precisamente. Este exagero de 11 Oscars parece-me tanto mais significativo do enfado da cerimónia se atentarmos à reacção da plateia do Kodak Theatre aquando da entrega do Oscar de Melhor Realizador a Peter Jackson, supostamente um aguardado momento. Um momento que se esperava de gáudio absoluto para reconhecer devidamente o trabalho do realizador que deu luz cinematográfica à obra literária de Tolkien. Um momento em que se esperava uma ovação de pé no Kodak Theatre.

Não aconteceu nada disto. Foi um momento tão banal como a entrega de um Oscar de melhor curta metragem documental. Porquê? Talvez porque a plateia estivesse farta até à ponta da crina de aplaudir 9 vezes até à altura, O Senhor dos Anéis. Talvez porque a cerimónia estivesse a ser aborrecida. Talvez porque no meio de 11 Oscars, o de Peter Jackson não tenha o destaque e o peso que merecia. Por mil e uma razões, o certo é que quando Jackson recebeu o Oscar da mão de Tom Cruise, já não soavam palmas no Kodak Theatre. Ou seja, para a História poderão ficar os números, mas faltam os momentos. Foi, além do mais, uma cerimónia aborrecida até na distribuição dos prémios. Sean Penn, Charlize Theron, Peter Jackson, O Senhor dos Anéis, etc... era impossível ser mais previsível. Aliás, em boa verdade, muitos de nós até quiseram complicar demais as previsões (eu recordo-me que previ 8 Oscars para O Senhor dos Anéis). Colocando a questão de uma forma paradoxalmente clara e eficaz: foi a cerimónia mais imprevisivelmente previsível dos últimos anos. O que é, normalmente, uma grande celebração de cinema, acabou por ser, este ano, uma aborrecida festarola de hobbits. E eu que gosto tanto dos filmes.

Tiago Pimentel

Lista dos Oscars mais importantes:

Melhor Filme: O Regresso do Rei
Melhor Realizador: Peter Jackson
Melhor Actor: Sean Penn
Melhor Actriz: Charlize Theron
Melhor Actor Secundário: Tim Robbins
Melhor Actriz Secundária: Renée Zellweger
Melhor Argumento Original: Lost In Translation
Melhor Argumento adaptado: O Regresso do Rei
Melhor Guarda-Roupa: O Regresso do Rei
Melhor Direcção Artística: O Regresso do Rei
Melhor Caracterização: O Regresso do Rei
Melhor Banda Sonora: O Regresso do Rei
Melhor Canção: O Regresso do Rei
Melhor Longa Metragem de Animação: Finding Nemo
Melhor Fotografia: Master and Commander
Melhor Mistura de Som: O Regresso do Rei
Melhor Montagem de Efeitos Sonoros: Master and Commander
Melhor Montagem: O Regresso do Rei
Melhores Efeitos Especiais: O Regresso do Rei

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