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Tiago Pimentel
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quinta-feira, agosto 02, 2007

Sem Bergman

No dia a seguir à morte de Bergman, acordei calmamente mas com um pensamento perturbante e inamovível: o mundo perdeu Bergman! E, sendo um pensamento inquietante, era diferente daquele que me invadiu aquando da morte de Kubrick. Pensei na altura que nunca mais iria ver um filme de Stanley Kubrick, mas a mesma sensação não poderia ecoar com Bergman, até porque o seu último filme feito para cinema e proclamado pelo cineasta nessa mesma condição tinha sido Fanny och Alexander (apesar do prolongamento televisivo da sua carreira que culminou com o luminiscente Saraband). Com Bergman tratava-se “apenas” de uma dorida sensação de luto; de me aperceber que, ao contrário de mim, Bergman já não tinha acordado nesse dia; que, apesar de distante, ele já não estava no mundo, a filmar as nossas imagens, os nossos olhares, a nossa sensibilidade. De Bergman restam-nos os pergaminhos cinematográficos que, de alguma forma, nos tornam próximos da sua intimidade, da sensibilidade de uma pessoa que, em boa verdade, não conhecemos fisicamente mas que, de uma forma invulgar, nos conheceu melhor que ninguém.

Os filmes acabam por desenhar uma estranha relação de cumplicidade com alguém que nunca tivemos o prazer de conhecer e, também por isso, nos custa tanto ver partir. Nestas alturas, por razões pessoais e cinéfilas, apetece rever a obra de quem nos deixou. É uma forma de relembrarmos a importância que a vida e carreira do cineasta implicou para o cinema e o que a sua morte acaba por significar para nós e a nossa cinefilia. Apetece-me rever urgentemente Persona, um filme que não vejo há muitos anos e do qual guardo um especialíssimo carinho. E, apesar dos anos de distância que me separam das memórias do filme, há uma sequência de imagens que nunca mais consegui esquecer e que, em boa verdade, desmentem o cinema de Bergman como um cinema exclusivamente psicológico. Falo, logicamente, da sequência de abertura de Persona com a queima da bobine e os fragmentos de imagem que parecem invadir a tela, provocando reacções instintivas e visceralmente inquietantes. Nunca mais a esqueci, não só por ser um dos meus filmes de eleição, mas também porque me relembra que o cinema pode também ser construído e desconstruído por imagens cuja única relação de montagem parece ser uma estranha consistência de tom e sensações. Como se tudo pudesse ser regredido, devolvendo ao cinema uma refrescante sensação de pureza temerária, onde as imagens reconquistam o seu lado mais perturbante e expressionista. Porventura lembramo-nos de Un Chien Andalou de Buñuel, outro dos grandes experimentalistas da natureza das imagens (e da expressão surrealista das imagens).

Em todo o caso, e relembrando-me de tantas obras primas na carreira do cineasta (Persona, O Sétimo Selo, Da Vida das Marionetas, Morangos Silvestres), acaba por ser tranquilizante e enternecedor que o realizador se tenha despedido com Saraband, um dos mais belos filmes da sua carreira. O cineasta sueco não será (infelizmente) relembrado por Saraband, mas Saraband será, para sempre, a despedida que Bergman nunca chegou a pronunciar e o último olhar que o realizador aceitou partilhar connosco. Um filme sobre a tristeza do envelhecimento e das desconstruções familiares que vemos projectadas nos nossos próprios erros e lamentações. Terrivelmente belo. Nada o poderia definir melhor.

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