<$BlogRSDUrl$>

Um site para pensar sobre tudo e chegarmos sempre a um singular pensamento final: sabermos que nada sabemos.
_____________________________

Tiago Pimentel
Críticas dos leitores para: tiago_pimentel@hotmail.com

domingo, novembro 30, 2003



Site Oficial

«Finding Nemo»

A nova pérola da associação Pixar/Disney é um pequeno prodígio. Em primeiro lugar, um prodígio de animação, cada vez mais apurada e impressionante no detalhe, nas expressões, na profundidade, nas cores, na suavidade da água, etc. Um prodígio do argumento, possivelmente o melhor e mais conseguido de todos os filmes da Pixar. O filme chega a limites de criatividade absoluta, não deixando que nenhuma personagem secundária se torne decorativa, desde os caranguejos «das ruas» (de Nova Iorque?) com uma forma muito especial de tratar os «invasores» do seu espaço pessoal, até às sublimes gaivotas (um achado!) com um sentimento de posse crónico, sem esquecer as pacíficas tartarugas que, na sua lentidão, deslocam-se a velocidades vertiginosas nas correntes marítimas. Ao contrário das inúmeras personagens secundárias com uma presença meramente simbólica ou de empréstimo de ideias pseudo-filosóficas de «A Viagem de Chihiro» (sem querer ofender ninguém) e das suas incertezas rítmicas, «Finding Nemo» é um filme com uma noção de ritmo das suas várias partes perfeitamente definida, com tempo para ser rápido e, ainda assim, impor momentos de pausa e flutuação.

A história toda a gente sabe, até porque o próprio trailer promocional fornece-nos essa base de entrada: o curioso e corajoso Nemo perde-se do pai no meio de um conflito entre os dois. As últimas palavras que Nemo dirige ao seu pai foram: odeio-te. Isto impõe um peso trágico tremendo à narrativa, implicando que tudo que vier a seguir seja condicionado por esse desabafo. Isto é: a necessidade que Nemo tem de regressar ao seu pai para lhe desmentir essa frase e a procura que o seu pai irá iniciar para ultrapassar os seus próprios medos e provar ao seu filho que é capaz de o amar, mesmo que esse amor implique aceitar o seu crescimento e a sua exposição ao exterior. Em boa verdade, «Finding Nemo» é tão comovente e genuíno nas suas emoções porque é uma projecção simbólica (e animada) de necessidades humanas. É uma fábula popular, infantil no seu encanto e adulta na sua complexidade humana, temática e narrativa. É um filme apaixonante e de uma riqueza absoluta nas suas vozes: Albert Brooks (o pai Marlin), Alexander Gould (Nemo), Barry Humphries (no papel de um tubarão chamado Bruce, decidido a negar os seus instintos e necessidades alimentares), Willem Dafoe (num comovente papel de um peixe do oceano, aprisionado num claustrofóbico aquário) e Ellen DeGeneres (num dos papéis mais divertidos e comoventes do filme: Dory, uma espécie de versão feminina e marítima de Leonard Shelby em «Memento»). Assim, e esperando que ninguém se ofenda, «Finding Nemo» é muito mais simbólico, pensador, humano, subtil e estimulante do que as filosofias escancaradas e marteladas de «A Viagem de Chihiro».


Class.:

Tiago Pimentel

sexta-feira, novembro 28, 2003

Confessionário - Onde Está o Natal?

Quando, toda a gente sabe: é dia 25 de Dezembro e tem uma vizinhança de sensivelmente 2 ou 3 semanas. Mas onde... onde está o Natal? Para o Confessionário deste mês fui buscar um tema que durante, pelo menos, um mês do ano é vivido com a intensidade das memórias e dos outros. Dos outros porque o Natal existe num espaço comunitário; é, aliás, a sua grande força: a união e a confraternização. Desde muito cedo que o Natal é um tempo e um espaço de absoluta catarse para a tristeza que habita muitos filmes. Estou a lembrar-me de um exemplo recente, Catch Me If You Can: o Natal andava sempre de mãos dadas com a narrativa e com as emoções. É, por isso, mais triste que Frank Abagnale (DiCaprio) regresse a casa no fim para reencontrar a sua mãe num outro ambiente familiar, numa família onde já não pertence... em pleno ambiente natalício. E não admira que seja tão triste; o Natal existe quase sempre numa lógica de reunião familiar.

É a época das tréguas, da paz familiar, da felicidade. E, por outro lado, recupera a tristeza do efémero, a melancolia que não abandona os cépticos, aqueles que não acreditam no «viveram felizes para sempre» que as fábulas populares colocariam no epílogo operático, imediatamente antes do «The End». Eu prefiro sempre não pensar no que vem a seguir ao «The End». Até porque a vida é feita de pequenos momentos, de pequenos fenómenos que justificam a suspensão efémera da nossa felicidade. Ou melhor, faria mais sentido falarmos no plural, isto é, em felicidades. Existimos em constante corrupção com a felicidade, porque o amor também passa por aí: apercebermo-nos da fragilidade de todas as coisas da vida. E a felicidade é sempre uma busca e nunca uma conquista; talvez seja uma vivência com a intensidade do desejo e da necessidade de pertencermos a um lugar. Aliás, talvez tudo se decida na nossa geografia humana. Andamos nesta vida à procura de lugares, tristes quando não os conquistamos e siderados quando nos apercebemos que já há muito tempo que lá estávamos, sem nunca nos termos apercebido. Ou seja, não depende do tempo mas sim do espaço, porque o espaço «intemporaliza» o tempo.

E esta linha do pensamento recupera a geografia indefinível do Natal. É um lugar. E é um lugar que existe onde? Dentro de nós, talvez seja a resposta mais óbvia. Mas não deixa de estar incompleta. Nestas coisas, acredito sempre nas diferentes formas de olhar para a mesma realidade. Completando um pouco mais a minha primeira sugestão, eu diria talvez que o Natal existe dentro do próximo. Parece a mesma coisa mas não é; aliás, olhar de forma diferente para esta problemática relembrou-me que eu não existo sem que alguém diga, de facto, que eu existo. E para eu chegar aos lugares onde me sinto bem, espero sempre que alguém lá esteja para mo relembrar ou confirmar. É por isso que o Natal não pertence a um tempo, mas sim a um lugar. A um lugar que nem sempre vivemos no seu tempo específico, nesse incólume mês em que os símbolos (precisamos de algo «material» para revivermos os nossos valores - não temos que nos envergonhar, nós próprios somos parte de uma matéria) das renas, da figura Crística, do Pai Natal e da neve nos ajudam a iluminar os lugares que procuramos. Olhamos para a neve e, para espanto nosso, não sentimos frio; sentimos o calor dos outros corpos que nos afagam no íntimo da nossa incerteza humana. Talvez nesse lugar a que chamamos Natal seja possível atingir a encantatória ilusão das grandes fábulas do cinema clássico e vivermos felizes para sempre.

Boas Festas antecipadas,

Tiago Pimentel

quinta-feira, novembro 27, 2003

O Tempo, a História, o Novo e o Único

Escrevo este texto sem intenção de responder directamente a ninguém. Mas as ideias que o Bruno Lomba e eu trocámos nos respectivos blogues levou-me a escrever um texto sobre a questão das importâncias, dos valores, das evoluções e de outros conceitos da mesma família. Olhando para o cinema de uma perspectiva histórica, é estimulante pensar nas diferentes riquezas e formas de construir uma arquitectura cinematográfica que as várias gerações de cineastas experimentaram. É possível pensar que Griffith foi, nesse sentido, um dos mais importantes cineastas da História – provavelmente o pai do cinema. É oportuno pensar que «Birth of a Nation» representa também o nascimento do cinema, como uma apresentação do alfabeto cinematográfico. É possível pensar no cinema clássico americano como uma paisagem de constantes variações dos seus próprios elementos. Estou a pensar, por exemplo, em cineastas tão distintos como Ford e Hawks: unidos pela mesma paisagem, mas separados radicalmente pelo olho da câmara. Claro que é interessante (até mesmo decisivo se quisermos compreender as convulsões contemporâneas que o cinema atravessa) perceber como evoluiu a 7ª arte. Longe de mim querer enquadrar um tópico tão rico e complexo no âmbito deste texto, mas seria interessante dar um ou dois exemplos, quanto mais não seja para desmontar o raciocínio inexoravelmente simplista que leio ocasionalmente quando se fala dos mestres do cinema. Hitchcock é quase sempre uma recorrência, enquanto nome fundamental para o avanço da indústria e do cinema. Vou poupar algumas palavras e citar Sidney Lumet no seu livro (magnífico, de resto) «Making Movies»: «Uma das razões que fazia Hitchcock ser justamente adorado era o seu toque pessoal ser fortemente sentido em cada filme seu. Mas o mais importante era perceber porquê: Ele essencialmente fazia sempre o mesmo filme. As histórias não eram as mesmas, mas o género era: um melodrama, perfumado por comédia ligeira, interpretado pelos actores com mais «glamour» que conseguia encontrar (e, já agora, os que fossem mais populares e comerciais), fotografado quase sempre pela mesma pessoa e com a música composta quase invariavelmente pelo mesmo.» Lumet escreveu isto num contexto específico. Falava ele da forma e como esta deveria seguir uma função. Mas esta citação serve apenas para relembrar que Hitchcock não é um cineasta «herdeiro de si próprio»; é, antes do mais, herdeiro do que viu e conheceu. É possível encontrar ali Orson Welles, Hawks e outros mestres do cinema clássico... e do melodrama.

Em boa verdade, talvez o único mestre sem herança tenha sido D.W. Griffith. Depois disso existem variações gramaticais, diferentes construções frásicas e textuais. Orson Welles, por exemplo, demarcou-se radicalmente da gramática Selznick (daí radicando os seus imensos problemas de controlo sobre os filmes). Kubrick talvez seja o único nome da História que existiu numa dimensão paralela onde, por curioso paradoxo, deixou o seu nome marcado na História ao mesmo tempo que o seu legado cinematográfico permanece intocado no seu próprio tempo. Ou seja, não foi uma gramática inovadora: o cinema não evoluiu com novas variações da forma «kubrickiana». Talvez por ser inimitável, mas para efeitos históricos pouco importa. E isto provoca-me uma reacção de insólito paradoxo: afinal Kubrick é um dos meus cineastas de cabeceira e pouco ou nada do seu cinema vive nos cineastas contemporâneos. Enfim, «2001, Odisseia no Espaço» é a excepção. Isto tudo para quê? Para denunciar um equívoco cada vez mais generalizado e que acaba por contaminar o pensamento cinéfilo no geral: pensar que os verdadeiros mestres e os grandes filmes são aqueles que trouxeram algo de novo ao cinema. Permitam-me desmontar este problema em duas partes. Primeiro, há que agarrar bem o conceito do novo. O que significa isto? É algo que nunca vimos antes? Bem, nesse sentido, um óptimo exemplo de um cineasta não-inovador é Tarantino. É um cineasta de um talento imenso mas é, também, um grande reciclador de fórmulas já usadas. Em boa verdade, dificilmente alguém faz cinema hoje sem repescar aquilo que conhece do passado; é uma impossibilidade humana, ponto final. O discurso crítico às vezes pode favorecer equívocos do género: Howard Hawks foi um dos grandes mestres porque trouxe algo de novo ao cinema. Nada contra, mas parece-me no mínimo enganador compararmos cineastas contemporâneos (decorridos que estão pouco mais de 100 anos de cinema) com cineastas que viveram a infância cinematográfica. E se Hawks e Ford viveram a infância (e um bocadinho da puberdade), talvez Hitchcock tenha sido o responsável pela adolescência, explicando assim (felizmente) os imensos traumas que habitam o cinema contemporâneo.

Alegorias lúdicas à parte, creio que é preciso perceber muito bem esta lógica do tempo para então compreendermos o fenómeno Histórico. Em segundo lugar, parece-me de todo discutível que o “novo” seja sinónimo de bom. Aliás, o discurso crítico favorece e sustenta bastante esta dicotomia, irritante na minha opinião. Li algumas coisas (poucas felizmente) sobre «Mystic River» acusando o filme de não trazer nada de novo. Então não traz? É a primeira vez que vemos Tim Robbins chorar daquela maneira. É a primeira vez que Clint Eastwood filma corpos daquela forma tão fúnebre e dorida. É a primeira vez que vejo um filme cruzar temas como a pedofilia, o uso de armas indiscriminado e a inocência corrompida da infância, desta forma tão sóbria e desencantada. Aliás, eu gosto de pensar que vamos ao cinema, não para ver o novo, mas para ver o único. E é isto que «Mystic River» nos dá. Pode não parecer novo, mas é único. Assim como «A.I. – Inteligência Artificial» é único. Ou como «Magnólia», «Being John Malkovich» ou «Ken Park», apenas para citar filmes contemporâneos. Gosto de pensar que vou ao cinema não para descobrir o que é que determinado filme traz de novo à História do cinema; mas sim, ver o que traz de novo para mim. Um filme existe sempre para um espectador e não para servir objectivos históricos ou as necessidades intelectuais de um biógrafo. Gosto mais do «Solaris» do Soderbergh do que do Tarkovsky, e estou-me nas tintas se o original foi mais importante historicamente que o seu «remake». No limite, a resposta está em reconhecermos afinal o que amamos no cinema: os filmes importantes para a História, ou importantes para nós.

Tiago Pimentel

segunda-feira, novembro 24, 2003

A propósito do que o Fernando (Pipoca Rasca) escreveu sobre a minha posição específica relativamente a Mystic River, nomeadamente a questão da temática, tenho a acrescentar uma ou duas coisas. De facto, concordo com o teu texto e com a forma como sublinhas o pessimismo humano do olho de Clint Eastwood sobre o Ser Humano. Mas se isso é algo que está presente em praticamente todos os filmes do realizador, parece-me que há «nuances» específicas neste Mystic River. Como eu disse, não se trata de um filme sobre a morte: trata-se de um filme instalado nas variações dramáticas que a morte pode impor, nomeadamente aos relacionamentos humanos. E a morte nos filmes de Eastwood tem precisamente uma componente fantasmática ou de assombramento; pode existir na extinção orgânica de um corpo mas também se prolonga como parte de outros corpos (vivos), como por exemplo num miúdo abusado sexualmente que se vê obrigado a redefinir conceitos como o amor e o ódio numa idade onde ignora ainda as variações sexuais desses extremos. É um filme pessimista, sim; ou talvez apenas desmistificador porque desmonta uma ideia universal que percorre geralmente o cinema clássico, isto é: a durabilidade infinita da amizade e do amor e a forma como conseguem ultrapassar todas as adversidades da vida. Em boa verdade, Mystic River é um filme que se instala de forma perturbante na (nossa) vida. Mas, no limite, é um filme onde parecem todos estar mortos. Eastwood conseguiu uma proeza: mostrar a vida com invulgar fulgor, filmando almas penadas.

Cumprimentos,

Tiago Pimentel

domingo, novembro 23, 2003

A crítica dos leitores

Estamos mesmo à beira de mais uma semana, mas antes vou deixar aqui um texto que o Bruno Lomba (velho conhecido do #q.i) me enviou a propósito do lançamento em DVD dos Indys, mais especificamente de Raiders of the Lost Ark. Não é habitual eu fazer isto, mas completarei este texto com um comentário meu:

O primeiro filme da saga Indiana Jones, um verdadeiro triunfo de Lucas e Spielberg. No fundo este filme abre uma nova etapa nos filmes de aventura, resumindo tudo o que de melhor se tinha feito até à data. Pensaram em Tom Selleck mas foi Harrison Ford que ficou com o papel, que constitui a par de Rick Deckard ("Blade Runner") o apogeu de toda a sua carreira. É um filme que recordo com muito carinho, marcou a minha infância, um filme quase perfeito, o romance, a comédia, o suspense, aliás, o que mais me impressiona, hoje, em Indiana Jones, é a maneira como Spielberg gere os climax's, o humor negro que se sobrepõe, esporadicamente, a toda aquela mescla de entretenimento. Não quero entrar em qualquer tipo de comparações com os outros dois filmes, todos eles são brilhantes, este e o The Last Crusade principalmente. Também acho oportuno desmistificar o fenómeno Spielberg, que, de facto, não é o único a fazer cinema de entretenimento com qualidade. Há um bocado aquele mito de que é profícuo gostar dos filmes de Spielberg como fuga a todos os nossos ideais de que o cinema tem que ser uma arte nobre, que defende a dignidade do ser humano como valor absoluto, que tem que ser anormalmente complexo e rico a gerir os interesses e os valores humanos, satisfazendo, desta forma, a parte lúdica, abrindo espaço para a renegação de uma série de evidências mais evidentes (desculpem a redundância) . Ou então não aceitar, de todo, Spielberg como um dos cineastas mais importante da actualidade numa atitude quase sádica, e então, neste caso, apelando à diferença. Duas posições radicais, e por isso é que eu digo que Spielberg é um realizador muito sobrevalorizado por uns e, porventura, o mais subvalorizado por outros, temos agora um bom exemplo, o do jornal inglês "The Guardian" que nos diz que Lynch e muitos outros auguram um futuro mais promissor que Spielberg. Mas o que é preciso dizer é que Spielberg é um realizador, também ele, limitado, genuíno sem sê-lo. A música de John Williams é fascinante, mas Spielberg pontualmente "tortura-nos". No fundo Spielberg revela-se incapaz de dar um contributo verdadeiramente positivo como outros mestres do passado, cuja obra desembocou em águas turvas, singulares, que ecoam, ainda hoje, nas nossas memórias e em todos os "livros de Cinema".

Parece-me importante levantar algumas questões pertinentes sobre o texto do Bruno Lomba, até porque existem algumas contradições práticas no seu discurso. Posso ser injusto até porque creio não ter compreendido todas as ideias e justificações que ele coloca no seu texto. Aliás, permito-me mesmo dizer que faltam algumas justificações para determinadas ideias deixadas em banho-maria. Quanto à questão da anedótica lista do jornal «Guardian» pode ter alguma ressonância pela sua internacionalização, mas para sermos justos, é o equivalente português do Correio da Manhã por exemplo. Fico também sem perceber de que formas sinuosas Spielberg nos tortura com a banda sonora de John Williams. E em que aspecto afinal Spielberg é limitado ou genuíno (sem sê-lo). Também não concordo com a tua posição relativamente a uma hipotética passagem turística perfeitamente inócua de Spielberg pelo espaço cinematográfico. Mas sinto também algumas resistências em apresentar contra-argumentos (sobretudo por não existirem argumentos à partida). Em qualquer dos casos, Spielberg foi o responsável pela renovação de um tempo cinematográfico com a criação de «Jaws» (1975) e a recuperação dos estúdios, terminando um espaço de 8 anos (1967-75) de absoluta utopia na criação da Arte (belo nos princípios, impossível na prática); foi o responsável pela reinvenção do cinema-aventura, recuperando o espírito das matinés e desafiando todas as convenções cinematográficas e de «mise-en-scène» que vigoravam na altura; foi o responsável pelo relançamento da fábula popular (E.T.), pelos desafios arriscados mas delirantes do burlesco de 1941 - Ano Louco em Hollywood; aceitou desafios narrativos e temáticos que o distanciavam da sua imagem de marca (imagem que hoje em dia já é difícil de definir); redefiniu o conceito de espectáculo como uma variação nobre e específica à própria Arte; no mesmo ano em que conseguiu isso com Jurassic Park (3 Oscars), a sua Lista de Schindler arrebatou 7 estatuetas da Academia, provando a sua incontornável versatilidade; redefiniu em absoluto a estética dos filmes de guerra, numa lógica documental hiper-realista (valendo-lhe mais um Oscar); fez um film-noir (Minority Report) que lhe valeu a aclamação crítica quase consensual; marcou férias (como ele disse) para filmar Catch Me If You Can; tem dois Oscars de realizador, um para melhor filme e arrebatou o auditório de Cannes em 1982 com o seu E.T. - O Extraterrestre. É, provavelmente, o realizador americano mais importante da geração dos movie brats e a única mais-valia que o tempo lhe poderá dar é a afirmação do seu valor artístico e deitar por terra, de uma vez, a noção reaccionária de que tudo o que vende é mau ou apenas interessante sem nunca possuir um verdadeiro valor artístico. Hitchcock sofreu a mesma injustiça no seu tempo e agora (depois do livro de Truffaut) é visto como um dos génios maiores da História do cinema. Seja como for, sinto alguma necessidade lacónica para construir os meus argumentos até porque não senti da tua parte um esforço suficiente para os justificares, Bruno. Fico à espera que dediques mais que meia-dúzia de linhas para descrever a complexidade de Spielberg, sem teres a necessidade de colocar sempre em causa a sua importância histórica despropositadamente ou lançares bombas e expressões de jovem turco sem colocares o mesmo esforço nas justificações. Compreendo a indiferença que Spielberg te possa causar, mas não é apenas sobre os que gostamos ou adoramos que devemos ser exaustivos na nossa escrita.

Com os melhores cumprimentos,

Tiago Pimentel

sábado, novembro 22, 2003

Sede de Mal

Espero não ser mal-entendido com este pequeno artigo, até porque nada nem ninguém pretendo denunciar, mas apenas reflectir sobre reacções do pensamento humano que me parecem cada vez mais evidentes e, correndo o risco de ser injusto, cada vez mais generalizadas. Não sei se será dos tempos tristes que vivemos ou das vivências tristes dos nossos tempos, mas apercebo-me, cada vez mais, de uma disponibilidade afectiva maior para narrativas mais negras e pessimistas, sobretudo dentro da comunidade cinéfila. O público em geral é o oposto, o que não invalida o cepticismo humano no geral. Talvez porque muitos procuram no cinema uma forma de escapismo do real: a congelação frívola das comédias mais elementares, a banalização grosseira dos filmes de acção ou até a deslocação planetária para outros mundos do fantástico. Diz-se que um cinéfilo é alguém que ama cinema. Para ele, ao contrário do espectador comum, é alguém que ama a 7ª arte acima de qualquer função escapista. Nesse sentido, onde uma comédia frívola e inconsequente pode resultar num estado de espírito encantatório a um turista de cinema (longe das preocupações cerebrais da sua triste realidade) já no cinéfilo essa despreocupação com as complexidades intrínsecas ao próprio ser humano constitui um interessante paradoxo com a sua atenção e sensibilidade aos efeitos simplistas e maniqueístas das imagens e da palavra. Esta divisão parece algo redutora mas na verdade não o é. Até porque a distinção está na forma como a palavra cinéfilo é redefinida pelas necessidades específicas de cada um. É bom saber descodificar estas «nuances» gramaticais: cinefilia significa amor pelo cinema. Por mais variações subjectivas que a palavra amor possa impor, creio que a simples súmula de obras visionadas dificilmente ilustrará com acuidade o amor genuíno que sentimos por algo. Não é por conhecermos mais pessoas que estamos mais preparados para amar apenas uma. O amor existe de forma individual, por filme e por espectador. E esse amor passa também pela disponibilidade de cada um em querer pensar. Pensar sobre as imagens e sobre as palavras.

Tanta conversa e até agora nada sobre aquilo que eu queria escrever. Mas pareceu-me oportuna a introdução. Sobretudo para introduzir um elemento que me parece decisivo: o que procura cada um no cinema? Creio que um cinéfilo deve sempre procurar mais do que um veículo para escapar a algo. Até porque as necessidades do seu pensamento o assombrarão em qualquer filme. É no seu olhar que se projectam os medos e o cinismo da sociedade e do público em geral (que prefere desviar o olhar no cinema e tolerar tudo aquilo que seria improvável ou pouco plausível de suceder no mundo em que habitamos). Voltando ao princípio, não sei se serão dos tempos tristes e convulsivos que vivemos, mas sinto que, cada vez mais, um filme carregado de negrume e pessimismo é mais tolerado que um filme optimista ou aparentemente mais ligeiro. Os exemplos mais recentes são os casos perturbantes de Elephant e Mystic River. Como devem calcular, não se trata de questionar o valor destes filmes - aliás, nesse sentido estou perfeitamente à vontade até porque são, para mim, dois dos mais preciosos filmes do ano. Mas foram dois filmes que conseguiram quase o consenso geral: não apenas o de bons filmes mas o de obras-primas absolutas. Mystic River é um dos objectos mais negros a sair do cinema americano dos últimos anos. É um filme com um desencanto absoluto sobre a durabilidade eterna das relações humanas, sobretudo a da amizade, aceitando o amor como a fundação familiar para fugir ao isolamento e à solidão. Quando há uns meses estreou um filme chamado Catch me If you Can, muito poucos foram os que valorizaram o lado perturbante do filme, optando por encará-lo como um simpático divertimento frívolo. Os últimos 20 minutos de A.I. - Inteligência Artificial foram acusados de serem uma disneyficação lamechas da frieza emocional e do negrume kubrickiano que os precedera. E agora pergunto: como é possível criticar um filme apenas na dualidade feliz/infeliz ou optimista/pessimista? Se um filme tem um final feliz é mau por si? Ou se, pelo contrário, termina da pior maneira possível é sinal de maturidade, de filme adulto? Se Spielberg realizasse Mystic River, a reconciliação entre a personagem de Kevin Bacon e a mulher não seria um sinal da tal disneyficação simplista e infantil, longe do negrume e pessimismo que deveriam habitar qualquer obra adulta? Ou será que isso já depende dos rótulos que os sacerdotes da acomodação mental promovem e destacam para cada cineasta? Por exemplo, não será difícil prever que Mystic River será um dos filmes do ano (o filme do ano?) para os profissionais dos Cahiers. As coisas não vão bem quando se tornam perfeitamente transparentes e previsíveis as opções e pensamentos de alguém, ainda para mais se for de uma revista inteira (que, na prática, reúne vários nomes). Estou consciente que corro o risco de utilizar o mesmo mecanismo humano que estou a denunciar; isto é, estou a criar rótulos também. Mas penso que o problema é de raíz: esses rótulos já foram criados pelas próprias pessoas que os justificam. E isso é o mais grave. Será possível receber um Bowfinger ou um Catch me if you Can com a mesma intensidade que um Mystic River ou um Elephant? Ou será que estamos de tal forma dominados pela insaciabilidade crónica do nosso lado mais céptico que tendemos a torcer o nariz para o final de um filme como A.I. - Inteligência Artificial? Ainda para mais olhando para a superfície, para os sinais mais imediatos, ignorando que por trás daquela reunião final com a mãe, estará porventura o casamento trágico com a morte. Qual seria o espaço de artistas clássicos como Chaplin ou Capra na sociedade cinéfila contemporânea? Será que os textos maravilhados que se escrevem sobre os seus positivismos estarão reconvertidos e especificados pelo poder que o tempo e a História lhes concederam? Triste e negro é aperceber-me que a História raramente é capaz de valorizar os seus artistas enquanto são vivos e que, só daqui a muitos anos (enfim, quando o tempo decidir impor-se sobre os preconceitos humanos) momentos como o fim de A.I. ou a comoção ligeira de Bowfinger serão apreciados e amados, acima de quaisquer terapias de humor negro ou de pessimismo crónico. Coincidência ou não, este foi um dos textos mais negros e pessimistas que tenho memória de ter escrito.

Tiago Pimentel

quinta-feira, novembro 20, 2003




11’09’’01 – 11 Perspectivas

Não é fácil olhar para um objecto tão fragmentado quanto este (quanto mais não seja pela diversidade de cineastas e culturas que nele habitam) e conseguir uma sensação final claramente definível. Até porque se há coisas muito boas lá dentro, há também episódios perfeitamente sensaborões e outros até obscenamente maus. O episódio mexicano (Iñárritu) é o único que lida directamente com as imagens do 11 de Setembro... sem as mostrar. Em boa verdade, Iñárritu recupera as imagens trágicas que todos conheceram e deixa apenas o som, obrigando o espectador a reviver essas imagens na sua memória. É, quanto a mim, o episódio mais forte, tanto mais que parte de um dispositivo audiovisual perfeitamente televisivo, negando-o logo de seguida, num paradoxo de sensações e emoções absolutamente angustiante.

Gosto muito do episódio israelita (Amos Gitai), pela forma como partindo de uma reportagem televisiva que dava conta de um acto terrorista em Israel, conseguia ao mesmo tempo passar naquele espaço um outro evento que ocorria do outro lado do mundo. Subitamente todo o espaço fica unido e deixam de existir fronteiras para a informação. Depois tenho um carinho especial pelo episódio da Makhmalbaf (Irão) e da perspectiva inocente, mas nunca ingénua, como lida com o fenómeno isoladamente. É um dos poucos segmentos que pensa apenas sobre o espaço que foi destruído e as pessoas que morreram. Nesse sentido é um filme sem um dimensão política evidente mas de uma compaixão humana avassaladora. Gosto também bastante do episódio francês (Lelouch), sobretudo porque, deixando a tragédia do 11 de Setembro para pano de fundo, consegue reproduzi-la de uma forma ainda mais fantasmática na extinção do amor entre dois corpos novaiorquinos. E o fim do amor representa sempre o fim de algo.

Pelo lado negativo, está a abominável carcaça política mais simplista e maniqueísta de todos os episódios: o segmento de Ken Loach (Reino Unido). Já são conhecidos os ideais radicais de Loach mas o seu segmento é menos um documentário e mais um comício político de um pedantismo tal que até a personagem principal parece estar a discursar para os simpatizantes de um partido de esquerda. Atenção que já nem se põe em causa concordarmos ou não com os seus ideais políticos, até porque um filme pode ser sempre um grande objecto político. Mas nunca se consegue essa dimensão à custa da alienação do espaço das personagens, convertendo essa dimensão numa espécie de tempo de antena onde Loach promove o seu discurso moralista, pedante e simplista. O episódio egípcio (Youssef Chahine) pertence ao mesmo espaço do segmento de Loach, com uma agravante: coloca em campo duas personagens e dá voz apenas ao militante anti-americano como se fosse uma simulação manipuladora e enviesada de um debate televisivo. Já o episódio de Sean Penn me parece mais híbrido embora tenha muitas dúvidas relativamente ao final e à forma como ele gere a queda das torres; o aparecimento do sol, nomeadamente, parece-me um elemento demasiado simplista e até perigoso para desmistificar uma certa ilusão americana, como que a sugerir, ainda que inconscientemente, o lado positivo da queda das torres. Como se vivessem na sombra ou numa escuridão que os impedisse de ver e fossem agora finalmente iluminados. Enfim, a revelação da morte da sua mulher pode emprestar alguma ambiguidade humana ao episódio mas tenho muitas dúvidas em relação à gestão de ideias e à própria perversidade que, a meu ver, desvirtualiza aquele segmento.

No fundo, é um filme desequilibrado, com coisas muito boas, outras muito más e muita paisagem. Um filme também algo distante do seu tema e bastante irritante com alguns discursos políticos militantes ou apenas moralistas, no mais redutor sentido da palavra.


Class.:

Tiago Pimentel

segunda-feira, novembro 17, 2003



Movie directing is the perfect refuge for the mediocre.

Orson Welles

Nunca é demais relembrar o incontornável ciclo (o mais completo) de Orson Welles que a Cinemateca realizará durante as próximas semanas sob o título: Orson Welles no século XXI - Labirinto sem Centro. É já hoje que passa um dos seus filmes máximos - o primeiro de muitos que renegou, depois do seu controlo absoluto sobre a montagem dos seus filmes lhe ter sido retirado. Magnificent Ambersons é um dos filmes mais poderosos mas também dos mais esquecidos do realizador. Mas o ciclo abriu com Citizen Kane, o filme que construiu a gramática do cinema moderno. E estávamos apenas em 1941 o que implica uma necessária convulsão com uma linhagem cinematográfica paralela: o cinema clássico com a gramática Selznick. Foi em 1939 que surgira o filme que devolveu segurança a Hollywood. Gone With The Wind parecia possuir todos os requisitos necessários para projectar Hollywood no cinema do futuro, com uma fórmula equacional perfeitamente definida. Claro que a receita foi mal entendida por muitos e foram precisos cineastas como Cukor, Minnelli, entre outros da mesma família clássica, para ensaiarem variações sobre os fundamentos da receita. Welles é um desses cozinheiros, talentoso, genial e, sobretudo, absolutamente seguro do seu talento. Mas foi também um dos que mais se distanciou da «fórmula» Selznick e, por isso, escamoteado nos seus filmes até ao fim da carreira (da vida).

Impõe-se olhar para este senhor e redescobrir a sua filmografia em todo o seu esplendor. Redescobrir Orson Welles, o cineasta mas também o actor e... locutor de rádio. Estávamos nos anos 30 aquando da formação da Mercury Players quando Orson Welles iniciou a colaboração radiofónica com John Houseman. Na afamada noite de Halloween de 1938, Welles fazia História ao simular uma invasão de extraterrestres em plena transmissão de rádio, causando o pânico em centenas de milhares de ouvintes. A controvérsia sempre acompanhou a convulsiva vida e carreira deste cineasta. Muitos ficam ainda chocados quando alguém revela que Citizen Kane foi o único filme em que Welles teve completa liberdade e margem de manobra; a MGM ficou radicalmente descontente com a cinefilia inovadora de Welles levando a que Louis B. Mayer procurasse mesmo o negativo do filme para o enterrar. E assim foi com a vida de Welles: um cineasta que muitos tentaram enterrar, receosos das suas ideias absurdas e revolucionárias. Hoje, é difícil arranjar cineasta cuja memória cinéfila no geral não ceda a considerar como um dos nomes mais elevados da História do cinema.

Tiago Pimentel

sexta-feira, novembro 14, 2003



Cinema na Cinemateca

Além do integral de Orson Welles que se avizinha nos próximos tempos, há uma projecção muito próxima que desejo sublinhar aqui. É já às 19h desta segunda-feira que a Cinemateca passará, dentro do ciclo Kubrick, o mais belo filme do novo milénio: A.I. - Inteligência Artificial. Apetece revisitar este filme com toda a disponibilidade humana que conseguirmos reunir dentro de nós, sabendo de antemão da impossibilidade triste e nostálgica de regressarmos à ansiedade inocente de uma primeira vez.

Tiago Pimentel
A crítica dos leitores

Depois do Tiago Costa, um outro Tiago enviou-me dois textos muito interessantes. Tiago Teixeira escreveu então sobre o desafio realista que «Ken Park» representa para a sociedade contemporânea e a reflexão artística e humana que «Minority Report» impõe:

Crítica a filme KEN PARK :

Filme-choque deste Verão, Ken Park é uma obra perturbadora e dolorosa - realizada pelo sempre polémico Larry Clark ("Kids" (1995), "Another Day in Paradise" (1998) e "Bully" (2001)) em companhia do director de fotografia Edward Lachman que trabalhou com Steven Soderbergh em "The Limey" (1999) e "Erin Brockovich" (2000), Sofia Coppola em "The Virgin Suicides" (1999) e Todd Haynes em "Far From Heaven" (2002) - que se assume logo desde o início como um retrato realista, frontal, negro, cru e lancinante dos meandros da adolescência, mundo conturbado e em permanente evolução onde abundam o sexo, a droga, a violência e a morte. É neste universo decadente, turbulento, perverso e transfigurador que Clark e Lachman nos descrevem a vida de quatro adolescentes (Shaw, Tate, Peaches e Claude) da pequena cidade Visalia do estado da Califórnia, tendo todos eles como "link" o adolescente que dá título ao filme e que ao contrário destes concretiza o acto radical e trágico de pôr fim à vida. Nesta cidade aparentemente pacata os valores sociais e morais são no dia-a-dia corrompidos de forma brutal por indivíduos solitários que mergulham gradualmente num ambiente de total depravação, alheamento e sedentarismo sendo a essência dos comportamentos distorcidos dos pais transmitida a um ritmo constante aos seus filhos que se encontram numa crucial fase de modificações físicas e psicológicas, sofrendo assim estes um processo acrescido de desorientação mental/emocional - Shaw (Bullard) tem um "affair" com a mãe da sua namorada; Tate(Ransone) masturba-se (recorrendo à asfixia erótica) enquanto visiona um jogo de ténis, assassinando o avô por ser batoteiro e a avó porque entra no seu quarto sem bater à porta; Peaches (Limos), filha de um pai estritamente católico, é afinal de contas uma ninfomaníaca sádica e Claude (Jasso) usa as drogas como meio de fuga à sua família. Contudo o alvo do olhar directo, verdadeiro e pungente de Clark não são só os adolescentes mas também os adultos - a mãe da namorada de Shaw é irresponsável e cínica; o pai de Claude é alcoólico (tal como a mãe) e assume-se como macho quando na realidade é um traste patético, vergonhoso e miserável (o ideal farrapo humano) que sente um fascínio sexual pelo filho, responsabilizando-o por tal atitude (o que culminará na tentativa falhada de abuso sexual do mesmo e posterior frase característica de "persona non grata": "Ninguém me ama!") . Apesar do argumento que analisa criticamente, sem
piedade nem rodeios, a sociedade e respectivos habitantes (fidedignos piolhos sociais) e do elenco amador que revela novos talentos cinematográficos (salientam-se as interpretações de Ransone e Limos), a realização é demasiado "fotográfica", i.é, recorre inúmeras vezes a imagens estáticas que têm como finalidade dar particular relevância às impressões visuais, denotando-se em contrapartida a carência de uma caracterização aprofundada e sagaz das personagens e da música (que devia estabelecer uma relação simbiótica com as imagens); o filme exibe igualmente cenas de sexo explícito ofensivo (motivo que condicionou a censura nos E.U.A e proibição na Austrália) que comprovam a visão real e (para defeito do filme) obsessiva que Clark tem do acto sexual - o próprio afirma : "Se dizem que o amor é uma droga, então o sexo é a sua dose mortal de heroína". Resumindo, Ken Park é um filme que desafia normas preestabelecidas, choca mentalidades pela frontalidade e sinceridade com que aborda o "genus vivendi" da sociedade moderna e que marca pela diferença qualquer espectador (e ainda bem que existem filmes assim !).

Para espectadores que gostam de arriscar.

O Melhor : O argumento, a fotografia, Tiffany Limos e James Ransone.
O Pior: Overdose de sexo explícito e análise "fotográfica" megalómana do
real.

Classificação: ***1/2

Crítica ao filme MINORITY REPORT:

Em 2054, num futuro negro, degradado e hostil, o crime é uma presença constante e incómoda e a sua erradicação é feita da forma mais radical, agressiva e tecnologicamente avançada que é possível: a informação que se possui sobre os vindouros actos criminais pode obter-se com uma antecedência de duas semanas, num raio de 450 quilómetros. Os dados são fornecidos por Pre-Cogs, três videntes que têm a capacidade de ver assassínios antes destes ocorrerem, à unidade de polícia Pre-Crime, liderada por John Anderson (Tom
Cruise), um homem emocionalmente instável (desde o desaparecimento do seu filho) que se entrega totalmente ao seu trabalho numa tentativa desesperada de fugir de si mesmo, das suas angústias interiores. O sistema policial parece infalível até ao dia em que se dá um surpreendente "volt-face" : Anderson é acusado de um crime que ainda não cometeu e a vítima é para este um desconhecido. Fugindo das autoridades, Anderson procura a todo o custo (nem que para tal troque literalmente de olhos em consequência da indentificação dos cidadãos ser feita por um "chip" inserido no globo ocular, numa das cenas mais impressionantes do filme) descobrir quem o incriminou e quais as razões existentes. A partir de uma das premissas mais interessantes e estimulantes (do ponto de vista emocional e intelectual) da história do cinema de "sci-fi" , Spielberg presenteia-nos um esplêndido filme a todos os níveis que vive sobretudo da descrição impiedosa e credível que Philip K. Dick (autor dos livros "Do Androids Dream of Electric Sheep ?" e "We Can Remenber It For You Wholesale", posteriormente adaptados ao cinema no magnífico "Blade Runner" (1982, de Ridley Scott) e no excitante "Total Recall" (1990, de Paul Verhoeven)) fez de um futuro próximo onde todos os valores morais, sociais, políticos e filosóficos são questionados permanentemente; a atmosfera sombria e mística, realização suprema, fotografia sinistra e bela, elenco fabuloso (destaque para a interpretação arrebatadora e memorável da actriz inglesa Samantha Morton (escolhida no lugar de Cate Blanchett), baseada menos no diálogo e mais nas expressões faciais) e efeitos visuais revolucionários são os acréscimos imprescindíveis que tornam esta obra fílmica num "mix" irresístivel de acção, drama, ficção-científica e "film noir" típico dos anos 40 e 50. Após uma carreira no cinema marcada por inúmeros sucessos simultaneamente artísticos e comerciais (proeza raramente alcançada na história da 7ª arte), Steven Spielberg constrói um filme digno de visionamento atento, reflexão e discussão, pelos temas que aborda mas fundamentalmente pela maneira inteligente, eficaz e sedutora com que estes são manejados no filme. O "leitmotiv" do filme (será que os fins justificam os meios- será que uma sociedade isenta de crime justifica a eventual prisão de inocentes?), a engenhosa e elaborada realização de Spielberg e as interpretações bem conseguidas de todo elenco (desde a estrela talentosa e milionária Tom Cruise, passando pelo veterano actor sueco Max Von Sydow, o actor irlandês revelação Colin Farrell e acabando na sempre fascinante Samantha Morton) funcionam formidavelmente no seu "ensemble". Concluindo, "Minority Report" é irrevogavelmente uma das melhores obras de Spielberg e consequentemente um dos melhores filmes do início do século XXI.

Para quem tenciona assistir a um filme de elevado valor artístico.

O Melhor: o argumento, a realização, as interpretações, a fotografia, a
montagem, os efeitos visuais, sonoros e especiais...Resumindo: tudo.

O Pior: A sensação de que o argumento se torna, por vezes, algo confuso.

Classificação: *****
Chegámos a mais um fim-de-semana e hoje tive o privilégio de ver o novo prodígio da Pixar: Finding Nemo. Devo dizer que é um filme fascinante pela sua simplicidade no tratamento da animação e encantatório como uma parábola adulta perdida algures entre o fascínio do cinema de aventuras e a procura constante e comovente de lugares onde poderemos pertencer. Tem o encanto inocente de uma criança e a maturidade nostálgica dos equilíbrios familiares. Um filme que parece chorar cada vez que se relembra a palavra orfandade.

Tiago Pimentel
A crítica dos leitores

Tiago Costa escreveu-me a dar a sua perspectiva, algures entre o fascínio e alguma desilusão, do último filme de Tarantino. É com prazer que vos convido a lerem o texto:

Não digo que o muito aguardado novo filme do prodigioso Quentin Tarantino seja um passo em falso numa filmografia brilhante - constituída apenas por três (grandes) filmes - mas é verdade que o considero o seu trabalho menos conseguido em cinema (não vi o pequeno episódio da sua autoria em «Four Rooms»). Dito isto, «Kill Bill - Volume 1» parece-me uma fusão muito divertida de referências (e até algum copismo) e géneros cinematográficos, ao mesmo tempo que consegue construir uma história e personagens com alguma identidade própria mas sem a emoção desejável ou rasgos de génio que o elevem a outro patamar. As emoções advêm sempre mais das memórias cinéfilas que o filme de Tarantino evoca constantemente, do que da intensidade da história que se está a contar ou conflitos humanos - tenho sérias esperanças que o 2º volume lhes venha emprestar mais densidade. Entre os géneros citados ao longo do filme - e que demonstram o enorme amor de Tarantino pela 7ª arte - o Western é o que mais impacto tem: a sequência construída em assombrosa animação Anime é uma belíssima citação do cinema de Leone e a música que acompanha as imagens é de uma beleza imensa, é puro Morricone, no seu melhor (bem, na verdade não é - é Luis Bacalov - mas o efeito pretendido é o da evocação das bandas sonoras do popular compositor italiano). É o melhor capítulo do filme e seguramente o mais emocionante (por causa das memórias, lá está...). E depois, também ajuda a conhecer melhor a principal vilã deste primeiro volume - O-Ren Ishii (Lucy Liu) - num retrato violento e dramático do seu passado.

No que diz respeito aos diálogos, Tarantino não se demonstrou muito inspirado, ou pelo menos não teve grande espaço para os utilizar neste volume, que aposta mais num espectáculo de imagens e música (brilhante BSO). Por isso, é muito provável que os fãs acérrimos do realizador, que vão à espera de sair da sala de cinema com mais uma dúzia daquelas frases memoráveis tão típicas do seu universo cinematográfico, fiquem desapontados. Os diálogos são realmente bons mas não espantosos, sendo que ainda assim existe muito humor em vários momentos do filme, tal como em «Pulp Fiction». A propósito do humor...chega até a existir algum excesso de paródia em «Kill Bill - Volume 1», o que também contribui para que a maratona de vinganças a cargo da "The Bride" (interpretação poderosa de Uma Thurman - a actriz perfeita para a personagem) não seja levada muito a sério. Assim a componente emocional fica a perder...o que não invalida que, por exemplo, o confronto final entre as duas rivais até seja bastante intenso. Uma das únicas cenas que, decididamente, não me convenceu foi a do episódio do Buck, no hospital. Esta é uma auto-referência óbvia do Tarantino a um dos seus filmes (lembram-se de Zed e o seu companheiro, em «Pulp Fiction»?) e não só confirma que o realizador começa a sofrer de alguma arrogância cinematográfica, como se trata de uma cena perfeitamente previsível dentro do universo Tarantinesco. E pouco importa que o humor negro da sequência possua, de facto, alguma piada...(e já agora, não é o momento mais sangrento do filme, mas é certamente o mais violento)

A já popular sessão de pancadaria em «House of the Blue Leaves» é um deslumbramento de cores, música e acção genialmente filmado por Quentin Tarantino que, tecnicamente, nunca esteve tão bem como aqui. Não considero a sequência um clássico do cinema de acção (falta talvez mais criatividade nos diversos combates, especialmente na parte dos 88 loucos) mas, de facto, é um delírio de entretenimento e humor, presente sobretudo através do excesso de sangue que jorra dos corpos e das figuras caricaturiais dos diferentes lutadores. Vale a pena referir que o responsável pelo espantoso trabalho de fotografia é o veterano Robert Richardson, colaborador de Oliver Stone em vários filmes, como por exemplo, «Platoon» e «JFK». Richardson será o director de fotografia do novo filme de Martin Scorsese, «The Aviator» (a estrear em 2004).

«Kill Bill - Volume 1» é um delírio de entretenimento, isto apesar de todos os seus aspectos menos positivos. Eu esperava mais de Tarantino após 6 anos de espera, principalmente quando o seu último filme tinha sido «Jackie Brown», uma obra-prima absoluta que deixava a certeza de que Tarantino estaria a crescer enquanto realizador. O seu 4º filme não o confirmou e nesse sentido não correspondeu às expectativas criadas - Tarantino começa a revelar os seus limites, apesar de filmar melhor do que nunca. Anyway, já estou a salivar pelo 2º volume...

Classificação: ****1/2

quarta-feira, novembro 12, 2003

Novo Espaço - A Crítica dos Leitores

Tenho recebido alguns mails sobre o blogue e, também, algumas perspectivas individuais dos leitores sobre alguns filmes (em exibição e não só). Tenho a certeza que as suas visões pessoais poderão servir para enriquecer este espaço. É nesse sentido que vos peço então para me enviarem críticas, pensamentos ou ideias (sobre tudo o que quiserem) que eu tratarei de as publicar aqui. Geralmente não sou nada adepto de censuras, mas se porventura surgir algum texto que não contribui em nada para o enriquecimento do espaço ou de algum pensamento; ou, pior ainda, favorece uma conduta indigna para o espaço ou para os pensamentos anteriormente publicados, não será obviamente aprovado. Podem enviar os vossos textos para tiago_pimentel@hotmail.com. Está aberto o espaço da comunicação virtual.

Cumprimentos,

Tiago Pimentel

segunda-feira, novembro 10, 2003

Religião, Televisão e Matrizes

Longa vai a linhagem de filmes que são herdeiros directos do fascínio pelas mitologias e pela mística das ligações entre o Homem e uma entidade divina. E o Homem procura constantemente essa relação com algo superior; sempre fez parte do humano, o confronto com a sua própria mortalidade e, no limite, com o desconhecido. Em «2001, Odisseia no Espaço» essa obsessão pelo (des)conhecimento invocava a relação limite do Homem consigo próprio, num filme todo ele envolvido pelo mais abstracto dos paradigmas humanos: filmar da perspectiva de Deus. Enfim, não é minha intenção transformar este texto numa inventariação reflexiva sobre as ligações do cineasta com a câmara, como a de um homem à procura de uma ordem divina. Seria fascinante, mas interessa-me mais relembrar os filmes que, de uma forma orgânica e directa, retrataram um determinado episódio bíblico ou relativo à religião. Ou de certa forma inspiraram-se nesses relatos para construirem fundamentos narrativos para uma ficção que, de forma directa ou simbólica, invoca essas mitologias.

Lembro-me sempre daquelas séries televisivas, transmitidas quase invariavelmente durante a altura da Páscoa, sobre a vida de Cristo ilustrada numa fórmula que se escudava num maniqueísmo esquemático, invalidando todas as possibilidades dramáticas e humanas. As personagens dessas séries eram sempre esquemas pitorescos, meros veículos de repetição verbal dos escritos dos livros sagrados, favorecendo uma limitação que é, de uma só vez, humana e televisiva: retratar o divino sem acreditar na possibilidade de uma relação com o humano. É uma limitação humana porque o Homem, desde sempre, tem uma dificuldade imensa em retratar o divino, sobretudo por acreditar na sua distância indizível e infilmável, confundindo divino com uma espécie de entidade anónima; e televisivo porque faz parte da cultura novelesca esquematizar o comportamento humano em padrões bipolares, simplificando a complexidade humana nos seus mais superficiais extremos. Nas suas limitações, «Matrix» acaba por ser um produto de ficção científica importado dessa realidade televisiva que os efeitos técnicos ajudaram a esconder.

Neo (Keanu Reeves) é Jesus Cristo renascido para uma nova Era, para tentar resgatar as pessoas do mundo falso (e dos valores falsos) que pensam habitar. Mas a figura crística de Neo sofre dos mesmos excessos de deificação que os Cristos das séries televisivas, só que se situa nos antípodas: enquanto Cristo era uma figura divina que nos aparecia para anunciar a liberdade, Neo é uma espécie de «making of» dessa encenação, ou seja, tenta ser o homem que Cristo terá sido antes de saber que era O Escolhido (The One). Mas a inexpressividade de Keanu Reeves e a previsibilidade invariável do argumento do(s) filme(s) acabam por colocar Neo no vértice diametralmente oposto ao do Cristo de Scorsese - um homem assombrado pela vontade de ser humano. Havia uma relação sensual entre o Homem e a máquina que existia no primeiro filme e que se foi banalizando com o avanço da saga, restando no fim apenas a elegância dos movimentos e a amargura grosseira daquelas paisagens visuais e narrativas – onde, em tempos, existiram sinais de atracção fatal pelos lugares, ainda mistificados, existe no fim uma banalização visual, como se essas paisagens fossem meras evoluções de níveis de um jogo de computador, e não projecções de luzes, cores e formas das ambiguidades virtuais e do desejo carnal da realidade.

As próprias personagens são corpos desvirtualizados (desligados da realidade e consumidos pela inércia do virtual), algures entre a lógica dos heróis dos videojogos e a letargia sonolenta dos autocolantes televisivos. Aliás, o segundo e o terceiro filme parecem dois espisódios esticados de uma série de televisão (que a luxúria técnica ajudou a disfarçar). Em boa verdade, e olhando para trás, penso que é perfeitamente claro que o primeiro filme fechou muito melhor do que o termo da trilogia. Há qualquer coisa de eminentemente televisivo nas duas últimas partes de Matrix, o que me leva a suspeitar que desde o início não havia uma iniciativa clara em construir uma trilogia – vontade essa despertada pelo sucesso incrível do primeiro filme. Mesmo olhando para os dois episódios que se seguiram, as personagens secundárias parecem importadas dos secundários serviçais de várias séries televisivas, desde o “frenchman” até ao “trainsman”, todos eles ícones de um universo que se esgotam no seu próprio simbolismo. Todos eles são funcionais, isto é, existem para cumprir uma missão que geralmente se reduz a uma de duas: transportar conselhos pseudo-filosóficos para o messiânico Neo (uma espécie de leitura da poesia dos «fortune cookies»); ou simbolizar um obstáculo físico, ou simbólico, para o sucesso da missão do herói. Afinal, «Matrix» não é apenas produto da pior cultura televisiva sobre as reminiscências do mitológico; é, no limite, o primeiro filme realizado dentro de um computador. E nesse universo já não existe espaço para o fascínio da imprevisibilidade humana, nem para a imaginação do processo criativo. Restam apenas sinais de uma nostalgia pelo nível zero da sensualidade dos corpos, pelos rituais eróticos dos corpos que se sexualizam no calor dos tiros e das lutas, esbatidos sem piedade pelos labirintos desumanos e frios que a narrativa dos irmãos Wachowski foi acabando por (des)virtualizar.

Tiago Pimentel

sexta-feira, novembro 07, 2003



Why are you crying?
I dunno


Site Oficial

«Elephant», de Gus Van Sant

É um dos filmes mais secretamente dolorosos feitos sobre o estado actual da juventude (podia ser apenas a americana, mas o espaço do filme transcende essa restrição geográfica). A proposta é aparentemente documental: Van Sant pegou na câmara e seguiu literalmente alguns dos jovens na sua vida escolar. Ainda que existam restos dramáticos fortíssimos do incidente de Columbine, em momento algum me parece que o objectivo do filme seja teorizar sobre a abundância generalizada de armas no mercado americano. «Elephant» é um dos mais perturbantes objectos de ficção criados num aparente mecanismo de exposição documental. Sobretudo, é um filme que não pretende exercer uma irritante manipulação de pensamentos nem reduzir a complexidade da realidade a uma ou duas conclusões genéricas sobre a erupção da violência descontrolada – exponenciada, é claro, pelo uso de armas de fogo. Ao contrário do insuportável «Bowling for Columbine», este filme de Van Sant é muito mais pensador mesmo parecendo que não está a pensar nada. Porquê? Porque limitando-se a mostrar os jovens na sua vida habitual, o filme obriga o espectador a pensar sobre a realidade que está a observar, em vez de adoptar pensamentos já fabricados (como, aliás, é habitual na política televisiva e abundava aos magotes na ditadura de ideias que era «Bowling for Columbine»).

É um filme sem pingo de maniqueísmos, nem manipulações e muito menos de demagogias. Sendo um objecto de ficção tem muito mais verdade documental do que «Bowling for Columbine» alguma vez sonhou conseguir. É um filme, nesse sentido, muito pouco teórico; é a exposição desnudada da juventude, uma espécie de observação científica sobre os comportamentos diários de vários jovens de uma escola. E mostra tudo: como os jovens gostam de jogar videojogos assassinos e sanguinários, ou como é ridiculamente fácil comprar armas no mercado virtual; mas mostra também como os jovens se conseguem marginalizar uns aos outros e o desequilíbrio mental que isso pode provocar a alguém que sofre humilhações constantes. Será que esta raiva descontrolada que perpassa a juventude não terá raízes bem mais profundas do que o discurso académico e até epidérmico daqueles que promovem a censura dos videojogos ou da violência na televisão? Será que não nasce directamente nos seios familiares ou escolares, nos relacionamentos humanos e pessoais? Será que o casamento das fragilidades de várias mentes ainda em construção não poderão provocar lesões mais profundas no interior humano de um jovem, do que as imagens de violência gratuita que dominam, por vezes, o espaço televisivo? São perguntas que o filme não tenta, nem quer, responder. Simplesmente mostra. E mesmo na amostragem é um filme de um rigor imenso, sobretudo na pluralidade de pensamentos que procura: mostra um jovem claramente perturbado (coincidência ou não, também é constantemente marginalizado na escola) mas mostra também um outro chamado John que tem claros problemas com o pai mas, ao mesmo tempo, demonstra uma clarividência mental e afectiva muito mais equilibrada.

«Elephant» parece-me o filme ideal para recebermos nos antípodas das seitas televisivas; é um filme para nos obrigar a pensar e a pormos de parte a acomodação de pensamentos que geralmente contamina o indivíduo gerando as uniformizadas ideologias de massas. É difícil pensar, mas ninguém disse que este era um filme fácil.



Class.:

Tiago Pimentel

quinta-feira, novembro 06, 2003

Duas coisas para comentar assim que tiver tempo:

* «Elephant», de Gus Van Sant. Muito rapidamente, parece-me um dos filmes mais poderosamente subtis sobre a juventude contemporânea. Comentário segue em breve.

* O novo álbum da Dulce Pontes em colaboração com Ennio Morricone, do qual ainda só ouvi duas faixas. Embora a amostragem seja reduzida, pareceu-me uma das coisas mais belas que a Dulce Pontes alguma vez vocalizou. E isto não é dizer pouco. Será o álbum do ano?

Tiago Pimentel

segunda-feira, novembro 03, 2003



Site Oficial

MATRIX REVOLUTIONS

The Big Sleep

Sempre fui relativamente exterior a este universo dos manos Wachowski, com algum interesse pelo 1º e desinteresse absoluto pelo 2º. O primeiro filme sempre me pareceu um exercício interessante, algo desequilibrado, mas com um conceito de imagem arrojado e fundamental para redefinir o «cyberpunk» numa lógica mais massificada e até mística. «Matrix» era o «Star Wars» dos Wachowski, com as devidas distâncias. O problema é que parece que tudo tinha sido dito e mostrado no 1º filme; tudo que vem no 2º parece-me perfeitamente redundante e de um encarceramento académico profundo. Aliás, o 2º filme veio desfazer o que o 1º tinha conseguido impor: um novo conceito de imagem e tempo para se conseguir liberdade formal para contar uma história, para o melhor e para o pior. Enfim, se o 1º filme conseguiu isso até certa altura, o 2º acabou por ficar prisioneiro dessa mesma lógica visual, acabando por convertê-la numa mera atracção circense, mais cedo ou mais tarde ultrassada pelos avanços tecnológicos.

Na altura, parece-me que houve uma recepção bastante tolerante relativamente a «Matrix Reloaded», uma vez que se tratava da primeira metade de um filme. Como se fosse impossível ter uma opinião sobre o filme; ou, pior, se fosse uma absoluta desgraça e o terceiro fosse uma obra-prima, isso pudesse de alguma forma recuperá-lo e transformá-lo num filme melhor. Enfim, após «Matrix Revolutions» é impossível manter estas dúvidas e acaba por confirmar-se aquilo que sempre me pareceu evidente nesta trilogia: a componente humana foi sendo, gradualmente, escamoteada pelos impressionantes, mas inconsequentes, efeitos visuais. O final do filme é disso paradoxo máximo: a música apocalíptica e as imagens finais tentam invocar uma grandiosidade épica que o filme simplesmente não suporta. Em boa verdade, como é possível sentir alguma emoção por personagens que são apenas programas de computador? Esta trilogia tenta ensinar que o amor é a chave para nos distinguirmos das máquinas; é a partir do amor que geramos o conflito humano que possibilita a liberdade de escolha entre o ódio e o amor, a verdade e a mentira, o humano e a máquina. Mas um filme nunca é uma dissertação nem um postulado científico. Colocar palavras com um conteúdo supostamente filosófico em personagens de pacotilha que as pronunciam como se estivessem a ler um teleponto acaba por produzir um resultado final vazio, falso e mecânico. Os irmãos Wachowski conseguiram algo insólito, de facto: criaram o primeiro filme realizado por um computador.

O efeito positivo deste terceiro capítulo da saga é desmascarar definitivamente esta mística absurda que envolveu a trilogia inteira (apoiada, sobretudo, na sobriedade do primeiro filme). É neste filme que se percebe que a relação Neo-Trinity (supostamente o centro daquele universo, o fundamento base da doutrina teórica do filme) simplesmente não existe. O filme trata-os como se fossem programas de computador, abandonados em corpos sem líbido nem vertigem dramática. Os secundários do filme parecem variações menores dos secundários dos «X-Files» (mas a que distância...) versão «software» que discursam os seus diálogos como quem anuncia a mais decisiva verdade. Além das algaraviadas filosóficas (já habituais), este terceiro filme tem ainda mais de uma hora da mais gráfica, explosiva e sonolenta súmula de tiros, sangue e chamas alguma vez vista na trilogia inteira. Se, por um lado, o filme nunca consegue levar-se a sério e produzir uma lógica dramatúrgica sólida, por outro, essa guerra está capturada num formato de tal forma académico e prisioneiro do seu próprio fascínio pelas possibilidades dos efeitos visuais que chega a roçar o rídiculo e a alcançar momentos da mais agastada monotonia.

Um filme onde o final não justifica nada a existência de uma trilogia inteira e, ainda por cima, pede descaradamente um quarto filme; um filme onde nada de humano parece existir e muito pouco de entretenimento se consegue produzir; e, acima de tudo, um filme que usa os seus corpos apenas como mensageiros de ideologias de «fortune cookies» e filosofias de pacotilha sem nunca lhes dar uma verdadeira presença. Os seus incondicionais têm defendido que o objectivo do filme é mesmo mostrar a desumanização de todos aqueles corpos e demonstrar que não passam de programas de computador. Nesse caso, este será mesmo o filme ideal para ser apreciado, na sua totalidade, por máquinas ou computadores.



Class.:

Tiago Pimentel

sábado, novembro 01, 2003



A imagem e a estética

A Cinemateca está a fazer um ciclo integral do cineasta Stanley Kubrick (finalmente), altura ideal para repensarmos o valor e o peso deste mítico realizador na História do cinema. O meu colega Mário Jorge Torres escreveu um artigo intitulado «Ver Kubrick de olhos bem abertos» no Jornal Público, onde defende (com o rigor e a frontalidade que lhe são reconhecidos) que Kubrick terá um peso excessivo na cinefilia actual, sobretudo nos cinéfilos com menos de 40 anos. Compreendo os seus argumentos e também percebo o seu subtexto - uma interrogação sobre a abrangência da verdadeira cultura cinéfila: será que os cinéfilos com menos de 40 anos viram mais que 2 ou 3 filmes de Hawks, Welles ou Von Sternberg? Se calhar não. Nem eu pretendo fazer uma extrapolação geral sobre o que a geração pós-«studio system» pensa de Kubrick. Quanto a mim, penso que foi um dos cineastas mais enigmáticos da História. Dos mais obsessivos também.

É o autor de um dos filmes mais abstractos (o mais abstracto?) da História do cinema, «2001, Odisseia no Espaço», e de uma das mais violentas - social e humana (e não apenas física e gráfica) - fitas que alguma vez desafiaram o olho humano, «Laranja Mecânica». Sempre que penso em cinema de terror, é impossível não relembrar a claustrofobia que as paredes «kitsch» desenhavam em «Shining», onde Nicholson passeava a nostalgia dos monstros descabelados e aos gritos do velho cinema expressionista - o tal «Mal Irracional» que Lang falava. A retrospectiva integral que a Cinemateca está a fazer é preciosa no sentido de deixar os incondicionais do cineasta descobrirem os seus primeiros filmes: «The Killing», «Killer's Kiss». Enfim, se «Full Metal Jacket» era um filme de guerra tendencialmente desequilibrado, mas com momentos sublimes lá dentro, já os outros filme de (anti)guerra (construídos nos antípodas), a sátira negríssima «Dr. Strangelove» e «Paths of Glory», tinham as coordenadas todas no sítio. Kubrick era um cineasta obcecado pelo peso da imagem, pelas variações que poderia impor aos olhares, à forma e às personagens. Cada imagem de Stanley Kubrick nunca era apenas um enquadramento mais ou menos bonito, como muitos querem fazer crer. A imagem «kubrickiana» era obsessiva nas cores e nas formas, fazendo tudo existir num universo cósmico místico, exterior a tudo o que se produzia até aí (e desde aí).

As cores quentes de «Barry Lyndon» aqueciam os corpos esquálidos que o habitavam e transformavam um filme de época num épico do abstraccionismo, num paradoxo de emoções em surdina constante, como se sussurrassem por baixo da impenetrável «voz off» de Michael Hordern. Tenho sempre alguma resistência a essas listas recicláveis e efémeras onde se hierarquizam os melhores cineastas de sempre. Quanto muito faria uma lista alfabetizada dos meus 50 cineastas de cabeceira, onde Kubrick lá estaria, pois claro. Se é melhor que Haws ou Welles, são questões menores. Foi, sem dúvida, um dos mais enigmáticos cineastas vivos e dos mais singulares. Foi, talvez, dos realizadores que mais fez por resgatar o sentido esquecido da palavra estética e o relançou como forma de partida para a construção de uma estrutura dramática. É impossível datar os seus filmes: eles existem apoiados numa lógica de imagens, cores e formas que são, antes do mais, deslocadas de quaisquer sinais de imediato realismo. O realismo de Stanley Kubrick é o da criatividade artística, existe na sua fábrica mental em constantes reformulações, a invocar toda a sensualidade que uma imagem nos pode provocar - porque rivaliza com a nossa lógica, desafia a nossa disponibilidade mental e afectiva e desperta a nossa capacidade de olhar. Revisitar a sua realidade será obrigatório para qualquer cinéfilo, com menos ou mais de 40 anos, deixando de lado questões menores de hierarquias e relevâncias históricas.

Tiago Pimentel

This page is powered by Blogger. Isn't yours?