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Tiago Pimentel
Críticas dos leitores para: tiago_pimentel@hotmail.com

segunda-feira, fevereiro 27, 2006



OSCARS 2006 - Previsões

Os Oscars enquanto desafio à (nossa) cinefilia

Todos os anos, por volta desta altura, os cinéfilos enfrentam um dos grandes desafios à sua própria cinefilia. De facto, os Oscars são o alvo preferido dos preconceitos de muita cinefilia insegura das suas próprias convicções. Aliás, tanto mais insegura quanto precisa da confirmação da Academia para justificar as suas opiniões e preferências. Quando as opiniões divergem das da Academia, essa alegada cinefilia convoca os lugares-comuns tradicionais: “Quem é que liga aos Oscars?” “São prémios conservadores e industriais.” Bem, eu ligo! As últimas cerimónias, há que dizê-lo, têm sido pautadas por uma desconcertante monotonia: tanto na previsibilidade dos prémios (a única grande surpresa nos últimos anos foi mesmo a campanha de «O Pianista»), mas sobretudo na incapacidade da Academia em lidar com a descida das audiências. Esta última questão tem obrigado a uma reestruturação das últimas cerimónias, nomeadamente na economia de tempos entre prémios e nos famigerados discursos na cadeira. Tudo isto, no limite, parece-me ter conduzido a cerimónia ao esgotamento simbólico da sua essência. A saber: a celebração do cinema com o mundo. E, sejamos frontais, não celebramos o cinema apenas atribuindo prémios; celebramo-lo, sobretudo, porque relembramos que o cinema faz parte do mundo, dos seus lugares, do tempo, de um passado. Celebramos a sua presença na memória das gerações dos nossos pais, avós, mas também na sua fulgorante actualidade. Nos últimos anos, fez-me falta relembrar os grandes clássicos, redescobrir algumas das suas imagens, sentir que os Oscars são muito mais que uma simples recolha de estátuas douradas, a lutarem constantemente contra a sua própria duração. Do ano passado para este, a grande evolução parece ser mesmo o anfitrião. De Jon Stewart espera-se, pelo menos, uma grande introdução, pontuada pelo humor corrosivo que lhe reconhecemos. E ele já avisou: “é demasiado fácil gozar com filmes como ‘O Segredo de Brokeback Mountain’, mas ‘Crash’ e ‘Munique’ são o sonho de um comediante”. É bom não esquecermos: os Oscars representam, sim, uma grande parte do público, mas são, fundamentalmente, um reflexo do interior da indústria, das suas convicções e fascinantes contradições.

Preferências pessoais

Há uns meses atrás, parecia generalizada a sensação inequívoca de estarmos a reviver a cerimónia de 1994, dominada então por Spielberg, cujos dois filmes - «A Lista de Schindler» e «Parque Jurássico» - venceram, ao todo, 10 Oscars, dividindo-se entre Oscars “principais” para o documento histórico sobre o Holocausto, e Oscars “técnicos” para o grande blockbuster do ano. Esperava-se uma campanha semelhante de «Munique» e «Guerra dos Mundos», com uma divisão em tudo semelhante, devolvendo a Spielberg o reconhecimento profissional da indústria e, possivelmente, o seu terceiro Oscar. Pessoalmente, gostava muito que fosse o caso, mas as últimas semanas já decidiram o contrário. Os dois filmes de Spielberg sairão, provavelmente, a zero desta noite e o cineasta será um dos grandes derrotados da cerimónia. Nem Spielberg, nem as suas duas obras primas, mereciam um tratamento assim.

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Melhor Filme

A imprensa americana, porventura enfadada pela monotonia que tem vindo a caracterizar os diversos prémios cinematográficos da temporada pré-Oscars, tentou nas últimas semanas reanimar as votações e devolver as expectativas todas ao grau zero. De certa forma, as 6 nomeações surpreendentes de «Crash» e a divisão mais ou menos homogénea das nomeações, acabam por favorecer um pensamento desviante, sustentado por personalidades centrais da crítica americana, como é o caso de Roger Ebert – que acredita, convictamente, que «Crash» irá ganhar o Oscar máximo. Em todo caso, não me parece haver grandes motivos para ignorar o óbvio. A saber: «O Segredo de Brokeback Mountain» ganhará o Oscar, após ter vencido o Globo de Ouro, o DGA, o Bafta, PGA, WGA e quase todos os prémios da crítica. Nem os lobbies homofóbicos dentro da Academia deverão contrariar esta tendência. Pessoalmente, é uma pena que um filme absolutamente fundamental da História do cinema como é «Munique» saia, previsivelmente, a zero da cerimónia e entre directamente para a história negra dos Oscars.

Vai Ganhar: «O Segredo de Brokeback Mountain»
Deveria Ganhar: «Munique»

Melhor Realizador

À imagem da categoria de Melhor Filme, esta parece-me essencialmente decidida para o lado de Ang Lee. Ganhou o DGA, o Globo e realiza o filme mais premiado do ano cinematográfico de 2005. Poderá existir algum espaço de manobra (muito pouco) para uma surpresa: Clooney e Haggis poderão atingir o zénite da magnífica campanha que os seus filmes atingiram neste fim de ano. Mas creio que o óbvio e esperado acabará por suceder e Ang Lee vencerá o seu primeiro Oscar que muitos ainda defendem que a Academia lhe deve desde «O Tigre e o Dragão». Na minha opinião, Steven Soderbergh venceu com absoluta justiça nesse ano, assim como outro Steven deveria ver a sua realização reconhecida nesta cerimónia. Este trabalho de Spielberg poderá ser esquecido dos Oscars, mas o tempo encarregar-se-à, como sempre, de devolver à cinefilia algumas potenciais verdades que tenham ficado esquecidas.

Vai Ganhar: Ang Lee
Deveria Ganhar: Steven Spielberg

Melhor Actor

O fenómeno «O Segredo de Brokeback Mountain» poderia, por arrastamento, potenciar todo o hype em torno do desempenho de Heath Ledger, actor que, durante pouco mais de duas horas, cortou radicalmente com os seus registos habituais e boçais, para se transfigurar num símbolo trágico da repressão do amor, num trabalho de composição verdadeiramente surpreendente. No entanto, a presença de Philip Seymour Hoffman é tão proeminente como a do próprio «O Segredo de Brokeback Mountain» (é bom não esquecer que Hoffman ganhou o SAG, prémio votado pela comunidade mais numerosa de Hollywood: os actores, precisamente), e creio que o Oscar para o actor norteamericano será, também, o único da noite para «Capote». Fica por premiar a contenção aflitiva e comovente de Joaquin Phoenix que devolve a Johnny Cash toda a verdade da sua história para lá da sua imensa iconografia. A ausência de Eric Bana da lista de nomeados estará muito próxima de ser considerada de crime cinéfilo.

Vai Ganhar: Philip Seymour Hoffman
Deveria Ganhar: Joaquin Phoenix

Melhor Actriz

Embora sem a proeminência de Hoffman, Reese Witherspoon poderá fazer o mesmo por «Walk the Line», que Hoffman por «Capote». O SAG será, provavelmente, o maior indicador do seu favoritismo, embora a runner-up Felicity Huffman possa baralhar um pouco as expectativas e devolver alguma imprevisibilidade à cerimónia. De qualquer forma, Witherspoon é uma das representantes mais fortes e talentosas da jovem geração de actrizes americanas e premiá-la seria, também, assegurar a reciclagem da própria indústria. Como sabemos do passado, a Academia sempre foi muito sensível a esta questão de fundo: o cinema vive, também, das suas próprias celebrações geracionais.

Vai ganhar: Reese Witherspoon
Deveria ganhar: Reese Witherspoon

Melhor Actor Secundário

O ano passado, Paul Giamatti esteve nomeado para o SAG, mas acabou apenas por ganhar o prémio em conjunto com o elenco de «Sideways». Este ano, o seu desempenho em «Cinderella Man» valeu-lhe, de uma vez só, o seu primeiro SAG e a sua primeira nomeação para um Oscar. A pálida recepção que o filme de Ron Howard atingiu, poderá funcionar contra Giamatti, tanto mais se nos lembrarmos que um dos nomes de referência do ano foi George Clooney. Se pensarmos que o seu «Goodnight and Goodluck» tem fortes possibilidades de não ganhar rigorosamente nada, este Oscar pelo seu papel em «Syriana» poderia funcionar como reconhecimento da sua indesmentível relevância para o cinema americano, para o pensamento político e, profissionalmente, para o actor americano que se vê representado no seu trabalho. A presença de William Hurt no sublime «A History of Violence» define a presença anímica, dramática e narrativa implicada, não só a um personagem secundário, mas também (e sobretudo) à relação decisiva de um plot secundário com a estrutura principal da narrativa..

Vai ganhar: George Clooney
Deveria ganhar: William Hurt

Melhor actriz secundária

Provavelmente, a categoria mais imprevisível da noite. Se Rachel Weisz fosse actriz de «O Segredo de Brokeback Mountain», nem seria assim tão surpreendente, até porque a actriz tem os dois prémios mais importantes que um actor pode ganhar em temporada pré-Oscar: o SAG e o Globo de Ouro. Em circunstâncias normais, o Oscar seria seu, sem grandes hesitações, mas há um efeito de compensação que pode funcionar a favor de Michelle Williams: De facto, este é o único Oscar de interpretação que «O Segredo de Brokeback Mountain» (previsivelmente, o filme vencedor da noite) poderá, eventualmente, vencer. Se o efeito «O Segredo de Brokeback Mountain» prevalecer, Michelle Williams vencerá o Oscar, caso contrário, manter-se-ão as previsões naturais originadas pelos SAG e Globos de Ouro. Uma categoria, de resto, marcada pela nomeação incompreensível de Catherine Keener, uma actriz de excepção (como outros papéis anteriores da actriz o comprovam), mas que em «Capote» limita a sua composição a uma presença esquálida e a meia dúzia de diálogos insuficientes para a relevância que lhe foi reconhecida.

Vai ganhar: Rachel Weisz
Deveria ganhar: Michelle Williams

Melhor argumento original

Se «Crash» não vencer nesta categoria, será seguramente uma das maiores surpresas da noite. Por duas razões muito directas: primeiro, porque venceu quase todos os prémios decisivos de argumento (nomeadamente o WGA) e apenas perdeu o Globo por estar em concorrência directa com «O Segredo de Brokeback Mountain» que, como sabemos, não irá competir directamente com «Crash», por estar nomeado, não para argumento original, mas para argumento adaptado; e, segundo, porque seria talvez o Oscar mais importante que o filme de Haggis, após tanto hype, se vê quase obrigado a vencer (e os membros da Academia têm consciência disso). Com imensa pena minha, o brilhante argumento de Woody Allen será ignorado, e as hipóteses do magnífico «Match Point» receber uma estatueta, são, lamentavelmente, infinitesimais.

Vai ganhar: «Crash»
Deveria ganhar: «Match Point»

Melhor argumento adaptado

Mais um Oscar inevitável para o filme de Ang Lee. Por todas as razões: por ter ganho o WGA (argumento adaptado), o Globo de Ouro para Argumento, mas também por ser o filme mais oscarizável do ano cinematográfico. A meu ver, fica por premiar um dos melhores argumentos dos últimos anos: precisamente o de Tony Kushner e Eric Roth pela sua sublime desconstrução narrativa, das conjunturas temáticas, humanas, políticas, sociais e culturais que sucedem a qualquer acto de violência em «Munique».

Vai ganhar: «O Segredo de Brokeback Mountain»
Deveria ganhar: «Munique»

Melhor longametragem de animação

Depois do trágico incêndio que eliminou anos de trabalho e arte dos míticos estúdios da Aardman, o carinho pela sua última longametragem de animação poderá ter aumentado de forma decisiva. Além do mais, foi a cristalização definitiva dos imortais Wallace e Gromit no grande ecrã, convertendo «Wallace e Gromit: A maldição do Coelhomem» no único dos 3 nomeados a vencer prémios importantes, nomeadamente 10 Annies. Apesar da minha imensa simpatia e fascínio pelo filme, creio que a ópera trágica e gótica de Tim Burton fica, injustamente, esquecida na cerimónia, bem como a hipótese do cineasta vencer o seu primeiro e mais do que merecido Oscar.

Vai ganhar: «Wallace e Gromit: A maldição do Coelhomem»
Deveria ganhar: «De Tim Burton: A Noiva Cadáver»

Melhor Direcção Artística

Nesta categoria específica, creio que as 6 nomeações de «Memórias de uma Gueixa», bem como a vitória do ADG (Art Direction Guild) funcionarão a seu favor. Pouco mais haverá a dizer, tirando talvez alguma espécie de compensação a George Clooney pelo trabalho magnífico de recriação do período mccartista. Em boa verdade, se «Goodnight and Goodluck» vencer, será, acima de tudo, um Oscar de compensação para uma das maiores revelações do ano.

Vai ganhar: «Memórias de uma Gueixa»
Deveria ganhar: «Goodnight and Goodluck»

Melhores efeitos visuais

«King Kong» deverá ser, este ano, o vencedor dos clássicos Oscars técnicos, por muitos entendidos como menores. Falo da tradicional tríade: efeitos visuais, efeitos sonoros e montagem de som. Não só por ter sido um fenómeno crítico nos EUA, mas também por ter sido o grande vencedor dos prémios de efeitos especiais, ao ganhar 3 VES. Não deixa de ser um equívoco, sobretudo pela dimensão cartoonish e artificial das suas imagens, especiais ou não, mas também porque «Guerra dos Mundos» redescobria o efeito especial como mais uma matéria dramática que serve uma história e nunca o contrário. Os tripods de «Guerra dos Mundos» ficarão como uma das invenções visuais mais assombrosas e centrais do mundo cinematográfico do novo milénio. Seja como for, a reconstituição digital do mítico King Kong é, em si mesma, um meritório prodígio técnico.

Vai ganhar: «King Kong»
Deveria ganhar: «Guerra dos Mundos»

Melhor montagem de som

Mais uma vez, a grande diferença, a nível exclusivamente técnico, que encontro entre «King Kong» e «Guerra dos Mundos»: a funcionalidade dramática. Os efeitos sonoros em «King Kong» são uma consequência directa das acções das personagens, seja um rugido do gigante macaco, ou os tiros ensurdecedores dos helicópteros. Mas um efeito sonoro de «Guerra dos Mundos» seria, por exemplo, a melodia sinistra e tenebrosa entoada pela proximidade de um tripod, com toda a sugestão inerente a esse terror. Redescobrir o som como sugestão da imagem é um dos maiores prodígios do filme de Spielberg.

Vai ganhar: «King Kong»
Deveria ganhar: «Guerra dos Mundos»

Melhores efeitos sonoros

As razões para as minhas preferências são semelhantes às que enunciei na categoria de montagem de som, embora aqui se destaque a presença de «Walk the Line». Talvez o segundo Oscar para o filme sobre Johnny Cash, a premiar a musicalidade da sua narrativa e o trabalho específico implicado à colocação da música enquanto banda sonora de narração.

Vai Ganhar: «Walk the Line« / «King Kong»
Deveria ganhar: «Guerra dos Mundos»

Guarda Roupa

Provavelmente, mais uma categoria que funcionará a favor das 6 nomeações de «Memórias de uma Gueixa».

Vai ganhar: «Memórias de uma Gueixa»
Deveria ganhar: «Charlie e a Fábrica de Chocolate»

Caracterização

Este poderá ser o Oscar que premiará um dos maiores sucessos comerciais do ano: «O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa: As Crónicas de Nárnia».

Vai ganhar: «O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa: As Crónicas de Nárnia»
Deveria ganhar: «Star Wars – Episódio 3: A Vingança dos Sith»

Montagem

Depois de vencer o prémio da ACE (American Cinema Editors), o Oscar parece mais do que certo para «Crash», tanto mais que todo o buzz que envolveu o filme, dificilmente será negado na sua totalidade. Eu diria que a Academia irá entregar uma espécie de cabaz simpático ao filme de Paul Haggis, onde o Oscar de montagem estará seguramente incluído. Um olhar para a cena de «Munique» em que se lêem os nomes dos judeus mortos, por oposição aos árabes responsáveis, servirá para nos apercebermos que a montagem pode, de facto, decidir, não só o tempo dramático de uma imagem, mas também a sua própria moral.

Vai ganhar: «Crash»
Deveria ganhar: «Munique»

Fotografia

A ausência de «Munique» já é suficientemente insultuosa, mas acaba por ser agravada pela inclusão de «Batman: O Início» que acaba por funcionar como seu substituto. Em todo caso, creio que esta será uma categoria em aberto, das mais imprevisíveis da noite. Por um lado, teremos de perceber se esta categoria já é demasiado importante para “oferecer” a «Memórias de uma Gueixa» em jeito de compensação pelas suas 6 nomeações. Por outro, a presença de «O Segredo de Brokeback Mountain» será sempre incontornável e o Oscar para o belíssimo trabalho de Rodrigo Prieto, além de justificado, seria também uma forma de somar mais Oscars para o filme mais nomeado do ano. Por outro lado ainda, a fotografia magnífica de «Goodnight and Goodluck» poderá valer ao filme de Clooney o seu único Oscar da noite. Tudo é possível, mas creio que o efeito do preto e branco austero e revivalista do filme de Clooney prevalecerá.

Vai ganhar: «Goodnight and Goodluck»
Deveria ganhar: «Goodnight and Goodluck»

Banda Sonora

A dupla nomeação de John Williams poderá funcionar contra si, embora o seu trabalho em «Memórias de uma Gueixa», já previamente premiado, possa voltar a sê-lo na noite dos Oscars. Por mais contente que eu fique por ver o maior compositor vivo de bandas sonoras a ganhar mais um Oscar, não deixo de lamentar que isso aconteça deixando as faixas trágicas de «Munique» na sombra.

Vai ganhar: «Memórias de uma Gueixa»
Deveria ganhar: «Munique»

Tiago Pimentel

terça-feira, fevereiro 21, 2006

A menos de 2 semanas dos Oscars...

Se as coisas correrem como previsto (e por previsto, leia-se a concretização estatística de todos os prémios ponderadores dos últimos meses, desde os Globos de Ouro, aos DGA, SAG, prémios da crítica americana, etc), a cerimónia de 5 de Março será, passe a redundância, das mais previsíveis de sempre. Domingo colocarei um texto extenso com as minhas previsões, mas é, desde já, possível apontar algumas curiosidades. Em primeiro lugar, as previsões do crítico americano Roger Ebert que aponta «Crash - Colisão» como o filme favorito a ganhar o Oscar máximo. Um hype que a imprensa americana - talvez enfadada pelo favoritismo linear de «O Segredo de Brokeback Mountain» - tem vindo a favorecer. Um favoritismo que me parece, de momento, irreversível e reforçado recentemente pelos BAFTAS que, apesar de tradicionalmente alternativos à perspectiva americana, foram absolutamente concordantes e elegeram, também, o filme de Ang Lee como o melhor de 2005. Daí que o hype de «Crash - Colisão», apesar da sua campanha de fim de ano absolutamente surpreendente, me pareça mais uma invenção de imprensa do que uma realidade factorizada da opinião individual dos membros da Academia.

E, à medida que o último mês se vai esgotando, os incidentes da praxe vão ocorrendo, desde as declarações de Samuel L. Jackson a dar conta das suas fracas intenções em votar este ano (nenhum dos seus amigos está nomeado), delegando as responsabilidades para a sua família e empregados e assumindo tratar-se de prática recorrente em Hollywood, até às campanhas ilegais compostas por festas privadas que são, inclusivamente, proibidas pela própria Academia. Em todo o caso, creio que este ano as surpresas serão muito poucas e os (bons) momentos poderão surgir das tradicionais convocações da História do cinema e dos apontamentos humorísticos do anfitrião Jon Stewart. Dito isto, Domingo colocarei uma lista de pequenas previsões e pontos de vista que defendo, sem esquecer que os Oscars são, antes do mais, uma celebração do cinema com o mundo, e nunca uma concretização esquemática e clubística dos nossos gostos e preferências.

Tiago Pimentel

sábado, fevereiro 04, 2006





Munique, de Steven Spielberg

Classificação:


A lista é morte

Quando «Munique» estreou, já Spielberg tinha prometido uma campanha longe das promoções tradicionais dos seus filmes – ou, para todos os efeitos, para qualquer filme com ambições de chegar ao Oscar. Prometeu uma campanha de silêncios, devolvendo ao filme (e ao cinema) a sua própria ditadura de promoção. Cumpriu, o filme ressentiu-se nas nomeações e foi mal interpretado por grande parte da imprensa americana, lendo-o como um postulado político enviesado, embora não existisse consenso em relação ao lado para o qual o filme penderia (uns afirmam a pés juntos que é pro-palestiniano, outros que favorecia Israel). E, no meio desta questão ideológica secundária e simplista, Spielberg decidiu que era tempo de aparecer e defender o seu filme.

E, de facto, «Munique» não é um filme panfletário que defenda uma causa ou um lado; é, antes do mais, um filme que questiona a génese de qualquer conflito entre seres humanos, culturas ou civilizações. Existe espaço para todas as ideologias falarem e justificarem-se sem correrem o risco de serem julgadas. Ou seja: o filme não tem uma perspectiva moral sobre nenhuma ideologia em particular, apenas uma crueldade trágica sobre a morte que nelas se instala. Em boa verdade, não há maior equívoco do que entrar para este filme à espera de confirmarmos as nossas convicções políticas, sejam elas pro-israelitas ou pro-palestinianas. Nada mais poderemos confirmar do que a desintegração humana de qualquer forma de violência. Não só a violência contra os outros, mas também a violência dentro de nós. Dito de outra forma: ao matar os outros, Avner vai morrendo também. A morte de Avner (sublime Eric Bana!) – ou a morte da Humanidade – podia ser o subtítulo deste filme, onde tudo se decide na desintegração dos valores humanos e na irreversível caminhada para o fim. Que fim? O nosso.

E «Munique» é o filme mais triste do mundo. Mais do que triste: é secamente desencantado na sua irredutível crueldade. No início, mostra-nos uma reconstituição do atentado de Munique, durante os Jogos Olímpicos de 1972, com imagens televisivas do jornalismo de época, para o espectador ser confrontado, de uma vez só, com o realismo inequívoco das imagens que lhe chegam, bem como da impossibilidade de as descobrir na sua intimidade. E «Munique» pode ser (e é) também a reconstrução de uma intimidade assustadora com o nosso terror(ismo). Não é, de todo, acidental que o filme se construa como um thriller interior ao dispositivo dos grandes filmes de espionagem dos anos 60 e 70 e vá, progressivamente, mergulhando na intimidade do protagonista. Ao mesmo tempo, pontua a narrativa com a desconstrução do atentado de Munique através de inserts em flashback que, sabemos, assombrarão para sempre a memória de todos. A primeira parte é, provavelmente, o melhor thriller de sempre: não só pela encenação milimétrica e pelo ritmo pulsante das suas imagens, bem como pelos corpos humanizados que nelas se instalam e cuja irreversível tragédia existencial acaba por transcender qualquer moral política ou ideológica que restabeleça algum conforto.

Se mais não existisse (e existe), «Munique» seria um prodígio técnico de montagem, mise en scène e fotografia. Spielberg volta a descobrir o zoom como uma opção moral de redimensionar o espaço físico e dramático. De repente, as coordenadas e os sentidos do mundo baralham-se e a insegurança do seu espaço instala-se, de forma inequívoca, nos corpos que o tentam perverter. É uma opção dramática, de facto! Mais do que uma estratégia formal de convocação de técnicas do passado (estou a pensar nas câmaras liberais do cinema dos 60’s e, sobretudo, no fascínio da Nova Vaga onde tudo parecia possível), o zoom assume-se aqui como uma renovação das formas de filmar do presente. A primeira dúvida instalada no espaço dramático e moral do filme surge, precisamente, no momento que precede a primeira morte, quando Robert (Kassovitz) pergunta desesperadamente: “E agora?” Não é, de facto, fácil confrontarmo-nos com a incerteza das nossas convicções, quando somos colocados no mesmo plano prático que acreditamos combater. É tanto mais perturbante quanto nos apercebemos que, de facto, o nosso terror frente a uma indecisão destas é aguardarmos, com uma perversa ansiedade, que os assassinos disparem. Entenda-se: não porque queremos ver os outros mortos, mas porque não sabemos lidar com a espera, com a presença iminente mas inacabada da morte. É uma perversão hitchcockiana (helás!), mas é tanto mais perturbante quanto se instala na nossa realidade pós-11 de Setembro, em que o terrorismo se tornou, de igual forma, numa presença iminente e inacabada do nosso mundo. «Munique» é uma espécie de terceiro vértice sobre a trilogia do pós-11 de Setembro que o cineasta iniciou em «Terminal» e continuou em «Guerra dos Mundos».

O mundo dos lugares-comuns (o tal que divide o cinema de Spielberg em «sério» e «infantil») irá fazer o contraposto com a obra prima intemporal «A Lista de Schindler». Em boa verdade, parece-me bem mais dificil lidar com este «Munique», por duas razões: primeiro, porque, apesar de «A Lista de Schindler» (maioritariamente por causa da personagem de Fiennes) desmentir qualquer maniqueísmo, historicamente é bem mais simples identificar o lado do bem e do mal e olharmos para o Holocausto como uma tragédia da História que já passou; e, segundo, porque o filme é, justamente, o negativo de «A Lista de Schindler». Se, nas palavras de Ben Kingsley, a Lista era vida, em «Munique», a lista é morte, de facto. Ou ainda: Quem mata uma vida, mata o mundo inteiro. O último acto de «Munique» é particularmente angustiante e triste. A tragédia do herói spielberguiano nunca foi tão negra e o seu regresso a casa é comprometido por uma errância irreversível. É, novamente, a tragédia de David em «A.I. – Inteligência Artificial»: o seu regresso a casa é uma ilusão! Mas, ao contrário de David que faz por ganhar a sua Humanidade, Avner (o herói mais negro da filmografia de Spielberg) perde-a lentamente. E é tanto mais trágico quanto podemos identificar em Avner uma assustadora metonímia: o seu trajecto pode sustentar, em si mesmo, o fim da Humanidade. Nunca Spielberg foi tão cruel para os seus heróis como o foi com Avner. E não podia ser de outra forma: as personagens de «Munique» transportam, em si, a clarividência das suas posições ideológicas e o desejo inabalável de terem um espaço no planeta onde possam construir uma casa e uma família, mas também o sangue das vidas que tiraram.

A reflexão existencial e filosófica do estado do mundo em «Munique» é, de facto, anti-televisiva. Ao contrário das imagens de violência normalizada que a televisão nos faz chegar, impondo-nos o choque da sua brutalidade, a violência de «Munique» é anterior e interior a esse choque. Ela existe, antes do mais, dentro dos próprios corpos, nas suas incertezas e inadvertidas crueldades. E Avner é um dos filhos dessa crueldade, consumido até na sua intimidade. A polémica cena de sexo foi, de uma vez só, das mais geniais e cruéis que alguma vez assombrou uma tela de cinema: a impossibilidade de Avner amar fisicamente a mulher redu-lo à condição de animal que já deixou de viver, para apenas sobreviver (o polémico plano em câmara lenta sublinha-o, de certa forma).

É uma oração pela paz rezada no mais tenebroso inferno. É, no limite, uma das maiores obras de arte da História, um objecto histórico e central de qualquer livro de cinema, relembrando-nos que o mundo não se constrói apenas de terrorismos exteriores ao nosso espaço, como tantas vezes a televisão parece insinuar. É na sua infinita tristeza e no seu inabalável pessimismo que «Munique» nos devolve a vontade de repensarmos o mundo e as suas regras, exterior ao discurso determinista que dividide a Humanidade em focos ideológicos e religiosos, devolvendo-nos, também, o nosso direito exclusivamente humano de chorarmos e sofrermos. Um objecto imortal!

Tiago Pimentel

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