A arte e a verdade
Louis-Ferdinand Céline, autor do livro Viagem ao Fim da Noite, celebrizou uma curiosa citação: Quando escreves, devias colocar a pele em cima da mesa. É uma afirmação que arrasta, de uma vez só, a coragem do pensamento desnudado, bem como do corpo enquanto paisagem da nossa identidade. Dito por outras palavras: reflecte a audácia de nos despirmos de qualquer máscara, ao mesmo tempo que nos revemos nas palavras que retiramos do nosso próprio corpo (e que, por consequência, nele escrevemos).
É uma expressão poética que, infelizmente, nem sempre reflecte a verdade da arte. Sobretudo em artes mais mediáticas, concretamente a música e o cinema: o artista é muito mais um simulador, um apropriador de ideias e de poses que nem sempre reflectem a verdade escrita no seu corpo. É muito mais fácil colocar uma máscara em cima da mesa, em vez da própria pele. Um cantor, um actor, um cineasta, é tanto menos um artista quanto mais se esconde da sua própria verdade; quanto menos procura no sangue a linguagem específica da sua sensibilidade. Porque o sangue é a verdade sem dissimulações.
Charlie Chaplin, na obra-prima «Limelight», diz a determinada altura: Não gosto do teatro. Também não gosto do sangue, mas corre-me nas veias. É esta a biologia cruel que define o artista: ele, genuinamente, não o é por escolha, mas sim por obrigação, como uma droga que lhe corre nas veias. Não vivemos porque escolhemos respirar; respiramos porque escolhemos viver. A arte só é verdadeira se se manifestar como uma forma de vida, onde podemos rever esse desespero do artista em prolongar a sua existência por mais uns tempos, por mais umas pessoas. Um cantor mediano e vulgar dirá que procura melodias e letras inspiradas para poder dormir em paz. Um cantor de excepção dirá que ouve melodias e letras na sua cabeça e precisa de as retirar para o papel, de forma a poder descansar em paz. A mesma verdade revemos num argumentista, num realizador, num actor, etc. A arte enquanto verdade arrasta uma subversão da candura mediática de uma certa pose de celebridade.
Arte e verdade são dois conceitos tantas vezes mal tratados pelo discurso televisivo, manipulados pela necessidade de, em televisão, tentarmos sempre normalizar os pensamentos em direcção a um vector comum. É um problema, antes do mais, pedagógico e cultural que inviabiliza qualquer margem para afirmarmos a nossa diferença. A arte é sangue e a televisão, na maioria das vezes, é uma imitação barata, um circo de imagens aleatórias cuja abordagem mais próxima da verdade da arte se reduz, ora aos estereótipos banais das telenovelas, ora aos cabeçalhos escandalosos das revistas da moda devidamente comentadas. Será que os mais desatentos ainda não perceberam que é possível conhecer muito mais de Spielberg através de um filme seu, do que numa reportagem sensacionalista que constrói uma psicologia barata sobre a verdade que julga ver nas imagens? Mas também me parece importante explicitar que nada é tão linear como parece. A televisão pode ser arte, assim como o cinema é, tantas vezes, um discurso medíocre. A arte não depende do formato, mas sim do talento de partilharmos a nossa verdade com quem queira ouvir.
Pode parecer arrogante pensar que podemos definir a arte, um conceito já de si demasiado abstracto para encaixar numa definição. Neste texto tentei aproximar-me dessa abstracção, dentro da minha sensibilidade, sabendo, por curioso paradoxo, que não era possível criar uma definição concreta; apenas um conjunto de ideias vagas que ajudam a delimitar as fronteiras do conceito e, espero, orientam o meu pensamento e a minha sensibilidade quando ouço uma música, quando vejo um filme, ou simplesmente quando penso numa ideia. Em boa verdade, a arte existe também para isso: para nos ajudar a pensar e a reflectir sobre o que o artista escreveu no seu corpo. Porque, no limite, está a escrevê-lo, também, no nosso.
Tiago Pimentel
Louis-Ferdinand Céline, autor do livro Viagem ao Fim da Noite, celebrizou uma curiosa citação: Quando escreves, devias colocar a pele em cima da mesa. É uma afirmação que arrasta, de uma vez só, a coragem do pensamento desnudado, bem como do corpo enquanto paisagem da nossa identidade. Dito por outras palavras: reflecte a audácia de nos despirmos de qualquer máscara, ao mesmo tempo que nos revemos nas palavras que retiramos do nosso próprio corpo (e que, por consequência, nele escrevemos).
É uma expressão poética que, infelizmente, nem sempre reflecte a verdade da arte. Sobretudo em artes mais mediáticas, concretamente a música e o cinema: o artista é muito mais um simulador, um apropriador de ideias e de poses que nem sempre reflectem a verdade escrita no seu corpo. É muito mais fácil colocar uma máscara em cima da mesa, em vez da própria pele. Um cantor, um actor, um cineasta, é tanto menos um artista quanto mais se esconde da sua própria verdade; quanto menos procura no sangue a linguagem específica da sua sensibilidade. Porque o sangue é a verdade sem dissimulações.
Charlie Chaplin, na obra-prima «Limelight», diz a determinada altura: Não gosto do teatro. Também não gosto do sangue, mas corre-me nas veias. É esta a biologia cruel que define o artista: ele, genuinamente, não o é por escolha, mas sim por obrigação, como uma droga que lhe corre nas veias. Não vivemos porque escolhemos respirar; respiramos porque escolhemos viver. A arte só é verdadeira se se manifestar como uma forma de vida, onde podemos rever esse desespero do artista em prolongar a sua existência por mais uns tempos, por mais umas pessoas. Um cantor mediano e vulgar dirá que procura melodias e letras inspiradas para poder dormir em paz. Um cantor de excepção dirá que ouve melodias e letras na sua cabeça e precisa de as retirar para o papel, de forma a poder descansar em paz. A mesma verdade revemos num argumentista, num realizador, num actor, etc. A arte enquanto verdade arrasta uma subversão da candura mediática de uma certa pose de celebridade.
Arte e verdade são dois conceitos tantas vezes mal tratados pelo discurso televisivo, manipulados pela necessidade de, em televisão, tentarmos sempre normalizar os pensamentos em direcção a um vector comum. É um problema, antes do mais, pedagógico e cultural que inviabiliza qualquer margem para afirmarmos a nossa diferença. A arte é sangue e a televisão, na maioria das vezes, é uma imitação barata, um circo de imagens aleatórias cuja abordagem mais próxima da verdade da arte se reduz, ora aos estereótipos banais das telenovelas, ora aos cabeçalhos escandalosos das revistas da moda devidamente comentadas. Será que os mais desatentos ainda não perceberam que é possível conhecer muito mais de Spielberg através de um filme seu, do que numa reportagem sensacionalista que constrói uma psicologia barata sobre a verdade que julga ver nas imagens? Mas também me parece importante explicitar que nada é tão linear como parece. A televisão pode ser arte, assim como o cinema é, tantas vezes, um discurso medíocre. A arte não depende do formato, mas sim do talento de partilharmos a nossa verdade com quem queira ouvir.
Pode parecer arrogante pensar que podemos definir a arte, um conceito já de si demasiado abstracto para encaixar numa definição. Neste texto tentei aproximar-me dessa abstracção, dentro da minha sensibilidade, sabendo, por curioso paradoxo, que não era possível criar uma definição concreta; apenas um conjunto de ideias vagas que ajudam a delimitar as fronteiras do conceito e, espero, orientam o meu pensamento e a minha sensibilidade quando ouço uma música, quando vejo um filme, ou simplesmente quando penso numa ideia. Em boa verdade, a arte existe também para isso: para nos ajudar a pensar e a reflectir sobre o que o artista escreveu no seu corpo. Porque, no limite, está a escrevê-lo, também, no nosso.
Tiago Pimentel